Por Uma Vida Melhor: A Jornada
Oloture: a Jornada
Por João Lanari Bo
“Por Uma Vida Melhor: A Jornada”, minissérie de três episódios dirigida pelo nigeriano Kenneth Gyang, é um épico dramático sobre esse fenômeno migratório que assombra a modernidade – tráfico de pessoas, em particular de mulheres vítimas de exploração sexual. Seis em cada dez das vítimas que saem da África são nigerianas, procurando chegar à Europa via Níger e Líbia e depois para a Itália. Nos últimos anos, registrou-se também fluxo significativo para o Oriente Médio ou para as regiões da África Central e do Sul. A minissérie é continuação do longa-metragem “Por Uma Vida Melhor”, rodado em 2019. Ambos, filme e minissérie, estão na Netflix.
O longa conta a história de Oloture, uma jovem e ingênua jornalista nigeriana que se disfarça como prostituta para expor o perigoso e brutal submundo do tráfico de pessoas. O roteiro é parcialmente baseado em reportagens da jornalista Tobore Ovuorie, motivada a realizar essa tarefa altamente arriscada pelo desejo de expor a máfia que levou à morte de sua amiga íntima Ifueko, vítima de Aids quando retornou da Itália em 1999. A sequência, produzida cinco anos depois, começa exatamente onde o filme original termina: Ehi (Sharon Ooja), jornalista disfarçada de prostituta, está a caminho da Europa após uma tentativa frustrada de escapar da rede de tráfico de pessoas que se infiltrou.
Em “Por Uma Vida Melhor: A Jornada” a realidade, mais uma vez, parece ultrapassar a ficção. Talvez o deslocamento do ponto de vista da direção de atores, não-eurocêntrico, contribua para essa percepção. A performance de atores e atrizes soa excessiva, artificial, no limite do caricatural – violência e opressão adquirem um tom realista perturbador, oferecendo um olhar penetrante sobre as realidades sombrias do tráfico de pessoas e da prostituição. A narrativa não escamoteia a corrupção que permeia as fronteiras das nações por onde Ehi e seus companheiros, uma mulher e dois homens, transitam. Do ambiente tropical nigeriano ao deserto do Níger e Líbia, os perigos da migração e do tráfico são retratados com extrema intensidade.
A razão da fuga de Ehi é a ameaça de morte que sofreu pela reportagem. Em um momento da jornada, cai numa armadilha de um falso contato com alguém que seria da rede Al Jazeera. Antes, o ônibus em que viajava foi alvo de uma gangue rival e crivado de tiros – ela e outra mulher, Peju (Beverly Osu), foram as únicas a escapar vivas. Enquanto atravessam múltiplas fronteiras, a abordagem sinistro de “cinco dólares, cinco dólares” dos guardas é uma constante, quem não paga é largado no deserto. Traições e amizades surpreendentes, transporte em caminhão-tanque, tempestades de areia e emboscadas completam o cenário de experiências angustiantes.
Há, inevitavelmente, um viés político em “Por Uma Vida Melhor: A Jornada”. Não faltam personagens para corroborar essa premissa. Tobore Ovuorie, a corajosa jornalista, resumiu dessa forma o cenário da exploração sexual em seu país:
Na Nigéria, parece que quanto mais combatemos uma situação, mais endurecidos, sofisticados e criminosos os perpetradores se tornam. Há algo errado com as estratégias e isso geralmente tem a ver com o fato de que os criminosos também estão no topo.
Se a minissérie e o filme são por si só contundentes, o relato de Tobore vai além. Tobore passou quatro meses undercover no submundo da prostituição em Lagos, presenciou assassinatos e cabeças decepadas, uma brutalidade inimaginável.
O país onde vive e trabalha, a Nigéria, possui a maior população da África – 238 milhões de habitantes, maior do que a brasileira – e ostenta um quadro social complexo: islamismo e cristianismo alcançam cada um 45% da população, com as crenças tradicionais e outras religiões representando uma parcela menor, ligadas a grupo étnicos, como o iorubá, cuja presença é relevante no Brasil. A língua oficial é o inglês, herança colonial, mas a língua franca mais falada é nigeriano pidgin, de origem inglesa (na minissérie é a língua mais utilizada). O iorubá é praticado por mais de 47 milhões de falantes.
Toda essa multiplicidade, no campo do audiovisual, encontra-se de alguma forma condensada no termo inventado por um jornalista do New York Times, em um artigo no início dos anos 200 – Nollywood. Com a disseminação do streaming, a produção de origem nigeriana, dominante na África, passou a ser acessível a um público global, ainda que limitada a poucos títulos.
Novas narrativas, novas realidades. Uma rota de escravizadas atualizada para o século 21.