Pedaço de Mim
Amor amarelo. Amor Azul.
Por Júlia Wehmuth Roth
Assistido durante o Festival do Rio 2024
A diretora francesa Anne-Sophie Bailly já tinha dirigido muitos curtas antes do longa-metragem “Pedaço de Mim”, em exibição no Festival do Rio 2024, após ter passado no Festival do Veneza, nos quais desenvolveu sua identidade de criação com a preferência de tratar temas que capturam signos relacionados ao cuidado e a maternidade. Uma mensagem muito clara nesta obra é a forma como a responsabilidade e o peso do cuidado recaem frequentemente sobre as mulheres em diferentes comunidades que compõem nossa sociedade. (Aparentemente pais franceses também gostam de comprar cigarro). E a forma como isso as(nos) prejudica socialmente, como as(nos) estressa, corta oportunidades e direitos, prejudicando até mesmo a qualidade de vida daquele que está sendo cuidado.
Segundo Anne Shopie, “Pedaço de Mim” surgiu de lembranças da vida de Anne Sophie, que em sua adolescência trabalhou durante um verão em um asilo, lugar que conheceu as mulheres, mãe e filha, de 80 e 60 anos, que viriam a ser sua inspiração. Apesar de só uma das duas precisar de ajuda, devido a uma deficiência, ambas frequentavam o asilo juntas e não conseguiam seguir vidas separadas. Esse contexto de devoção familiar a fascinou e inspirou a criar Joel e Mona. Certamente alguns podem achar o ritmo da obra lento, sentir sono, querer sair do cinema etc…. E realmente se você estiver preso ao ritmo de vídeos de 10 segundos das redes sociais, este filme não é para você!
Pois “Pedaço de Mim” foi feito para ser assistido com calma, paciência e cuidado. Afinal, esse é justamente seu tema sobre o qual Anne Shopie tem muita coisa a dizer. Só que aqui sua narrativa fala por meio do silêncio, (espaços de tempo reservados à contemplação do momento presente), da fotografia estética e da captura da pele à pele. Um abraço, um soco, um toque de lábios e outras coisas um pouco mais “Picantes”. Após a sessão, algumas pessoas comentaram (em forma de reclamação) da explicitude das cenas de sexo, coisa essa que os franceses já normalizaram mais que os brasileiros. Mas a verdade é que nada foi de graça, havia uma linha de raciocínio perfeitamente amarrada com a história do roteiro, abordando uma perspectiva saudável do prazer feminino, como por exemplo, numa cena específica, que saiu de um tom sombrio para um claro demais.
“Pedaço de Mim” possui uma fotografia marcante, em que as cores do filme contam uma história por si só. Isso porque possui tons frios e quentes, constantemente discutindo entre si. Pode ser que essa não fosse necessariamente a intensão da diretora, mas ainda assim não tem com o espectador não associar, principalmente o Azul e o Amarelo, a uma reflexão de sentimentos da narrativa e das diferentes formas de amar que existem dentro das personagens, principalmente a da figura da mãe.
Essa mãe mais amarga com sua situação, egoísta em suas vontades e desejando liberdade luta com o que cresce dentro dela: um novo tipo de amor e a coceira constante (uma defesa física) dizendo que merece seguir em frente, se apaixonar, descansar, etc. Mas que ao mesmo tempo entra em conflito para permitir que seu filho cresça, mesmo se ressentindo dele na mesma proporção que ama. O cansaço, tornando essa parte de sua vida mais fria e gelada, acaba gerando uma personagem sincera em complexas camadas existencialistas-comportamentais. Como disse a própria autora da obra: “Cuidar é tanto um presente quanto um peso, é um relacionamento complicado. Não é só sobre amor, também é sobre precisar de alguém e depender um do outro. Uma pessoa cuidadora é tão dependente quanto aquele recebendo o cuidado.”
Em “Pedaço de Mim” não há romantização, não há idealismo ou santificação. A mãe não é perfeita, pois não precisa ser. Afinal a perfeição é inalcançável em um contexto em que se faltam peças… Essas peças, dela mesma, sacrificadas em nome de seu filho. Outro aspecto bem explorado no filme é a forma como ocorrem as representações sem criar estereótipos, enfatizando assim necessidade de não se infantilizar pessoas atípicas. Para isso, “Pedaço de Mim” traz uma perspectiva sensível de personagens com deficiência mental, que não desejam ser postas em caixinhas e tratadas como seres delicados e limitados. E mais, afinal ainda são adultos, mesmo que necessitam de mais ajudas e apoios possuem vontades, desejos, sonhos e planos de adultos. Iguais a qualquer um de nós!