Pacto Brutal: O Assassinato de Daniella Perez
A razão dá-se a quem tem
Por João Lanari Bo
não é preciso conhecer nada no mundo para consumir um fait divers; ele não remete formalmente a nada além dele próprio (Roland Barthes)
“Pacto Brutal: O Assassinato de Daniella Perez”, a minissérie que revisita os eventos em torno do assassinato da atriz Daniella Perez, em dezembro de 1992 – vai fundo em tudo o que cerca a tragédia, mas, paradoxalmente, insiste na superficialidade: é como se o esgotamento dos detalhes, das reações e negações, da perda e do luto, se constituísse numa membrana histórica, inelutável. Começo, meio e fim dessa história são exaustivamente conhecidos, não há como superá-los ou extingui-los, eles permanecem lá, achatados pelo real. Não significa que emoções e pulsões tenham se apagado com o tempo: o sofrimento das pessoas próximas da vítima resiste, o impulso sádico dos assassinos também perdura no tempo, mas as narrativas que se agregam a esses eventos tendem a uma curva assintótica – uma curva que, prolongada indefinidamente, aproxima-se dos prolongamentos de uma reta, sem poder jamais encontrá-los. A metáfora geométrica pode parecer fria, diante da dramaticidade do que que aconteceu, mas é útil para situar o espectador contemporâneo, confrontado com essa história que não tem fim, confinada que está na superficialidade desse real inatingível.
Claro, contribui para a percepção de esgotamento de tudo isso a inacreditável duplicidade que norteou os acontecimentos, realidade e ficção, a vida imita a arte e vice-versa, o avesso do avesso do avesso: se a teledramaturgia novelesca da TV Globo é uma conversa social, como querem fazer crer os peritos do mercado televisivo, a morte da atriz Daniella foi imediatamente percebida conforme o estatuto da ficção, embora mantivesse atributos do estatuto da verdade. Os eventos que a cercam seriam, em consequência, tautológicos, autoexplicativos, redundantes. Sabemos tudo, ou quase tudo, do que se passou, mas o mistério continua.
É nesse “quase” que investe a produção da minissérie, lançada em 2022, trinta anos depois dos acontecimentos. A sinopse é seca: Nos anos 90, Daniella Perez, uma das estrelas da novela de maior sucesso do Brasil é assassinada por seu companheiro de cena. Sua mãe se transformou em uma investigadora incansável e hoje compartilha os detalhes da sua saga pela justiça. Gloria Perez, a mãe de Daniela, é a principal âncora da série documental, autora da novela protagonizada pela filha e seu assassino, alguém que encontra falhas na investigação policial e passa a comandar sua própria investigação. Sua persistência e dedicação, a despeito de todo o sofrimento, são impressionantes – e as decisões que tomou parecem ter sido tomadas com base em premissas racionais. Seus oponentes – o casal Guilherme de Pádua e Paula Thomaz – espantam pela improvisação canhestra associada à violência resoluta. O passado dos assassinos vem à tona: Guilherme teria participado de um show erótico na Galeria Alaska, um inferninho onde Paula era conhecida por seus ciúmes e brigas violentas. Quando o casal rompe, surgem novas versões para o crime.
O cenário do crime, Barra da Tijuca, já por si só convida a uma leitura de “Pacto Brutal: O Assassinato de Daniella Perez” como superficialidade trágica, uma história absolutamente banal que descamba para uma execução ritualística. Finalmente, a mediação do aparato judiciário: depois de quatro anos de espera, começa o tão esperado julgamento de Guilherme de Pádua e Paula Thomaz numa atmosfera de muita expectativa. As teses da defesa são derrubadas ponto a ponto em um clima de muita ação nos bastidores. Sobram descrições e argumentos da razão jurídica instituída, que procuram em última análise orientar aos espectadores como lidar com esse mundo do fait divers, ou seja – fatos desconectados de historicidade jornalística, que se referem apenas ao seu caráter interno e seu interesse como fato inusitado, geralmente trágico.
A realidade, neste caso, parece ter sido substituída por um reality show. A internet e as redes acrescentaram mais uma camada de significações: os assassinos foram soltos com a velocidade do sistema penal brasileiro, que preza pela chance de ressocialização dos condenados, mas provoca uma inevitável percepção de impunidade. “Pacto Brutal: O Assassinato de Daniella Perez” seria mais uma etapa do consumo jornalístico desse patético evento o qual, diria Barthes, aponta para uma espécie de imanência informativa, um conjunto de dados que podem ser compreendidos sem a necessidade de um contexto. Folhetim e vida real se fundem, indissociáveis, como se a demanda por mais ficção só pudesse ser suprida por mais realidade, e vice-versa.