Pacarrete
Um filme que já nasce clássico
Por Marcelo Velloso
Durante o Festival de Gramado 2019
“Pacarrete” traz a história de uma bailarina e professora aposentada da cidade de Russas, município do estado do Ceará, interpretada pela atriz Marcélia Cartaxo. Está se aproximando o aniversário de 200 anos da cidade e Pacarrete deseja apresentar o seu número preparado com tanto carinho na programação da festividade, o que para ela seria um presente “para o povo”. Só que para isso depende da decisão de incluí-la ou não por parte autoridades que montam a programação da festividade.
“Pacarrete” (2019) é um filme de personagem e já se inicia com uma apresentação cativante da mesma. Aos poucos a história vai se desenvolvendo e a relação de Pacarrete com as outras personagens são apresentadas de forma clara. Um roteiro de qualidade apurada e muito bem desenvolvido, tendo como resultado um filme muito homogêneo. Allan Debberton no seu primeiro longa-metragem desempenha sem dúvidas uma direção certeira e teve seu filme estreando no Festival de Shanghai, o festival de cinema mais importante da Ásia.
Outra coisa que chama atenção em “Pacarrete” é a “troca” entre o elenco que demonstra estar bem afinado, passando o devido realismo que a obra pede, sobretudo nas cenas entre Pacarrete (Marcélia Cartaxo), sua irmã Chiquinha (Zezita Matos) e Maria (Soia Lira). A relação doméstica dessas três personagens transmite um afeto que salta a tela, mesmo que seja nos momentos de implicância de Pacarrete com Maria. Outra relação bonita é a existente entre Pacarrete e Miguel, um empático dono de um armazém interpretado por João Miguel, por quem Pacarrete nutre uma admiração especial e diferenciada, ao ponto de “morrer” de ciúmes do mesmo com Maria.
A atuação de Marcélia Cartaxo é de uma sensibilidade absurda, a atriz que já ganhou o prêmio Urso de Prata por seu trabalho em “A Hora da Estrela” no Festival de Berlim e já brilhou como uma prostituta em “Madame Satã”, mostra versatilidade e nos entrega uma Pacarrete crível, com uma composição cuidadosa que abrange desde a voz até o corpo que só a personagem teria. Pacarrete tem seu lado cômico, seja por seu lado ranzinza, seja pelo seu francês que aparece no filme em alguns momentos por meio de expressões do idioma. Inclusive seu nome artístico vem de pâquerette, que significa Margarida. Não à toa a personagem sempre está com seus chapéus com flores
Sobre os figurinos da protagonista, suas vestimentas trazem uma inspiração da década de vinte. As roupas de cores vibrantes e a maquiagem bem carregada ajudam a compor a identidade da personagem. Mas um trágico acontecimento modifica tudo. A caracterização de antes não é mais regra. O importante rompante a insere na tristeza, fazendo com que sua roupa, um forte elemento de conexão, também sofra dessa energia. Tudo é pertinente, arquitetado e justificado. Marcélia Cartaxo permite que sua Pacarrete mude então o tom para expressar suas frustrações e o seu momento de dor maior. Mais uma vez com controle absoluto de cena.
O cenário do filme, principalmente a casa de Pacarrete, nos transporta para um típico lar de cidade do interior, com cores claras, móveis antigos e elementos-chaves que ajudam a traçar a afinidade da personagem com a música e com a dança: vitrola, piano e vídeo cassete. A direção de arte de Rodrigo Frota é impecável.
Outro acerto é a trilha sonora de Fred Silveira, que traz desde a canção “We Don’t Need Another Hero” de Tina Turner, num momento catártico do filme, até músicas que reforçam o gosto que a personagem carrega pela cultura francesa, parte que nos remete ao filme “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain”(2001).
Pacarrete faz de sua calçada, seu palco, e por isso tem um cuidado especial, fazendo questão de sempre manter limpo esse espaço ornado por plantas. O ato é defesa, catarse e frustração. Tudo junto ao mesmo tempo. A “relação” entre a personagem e essa calçada é reforçada pelo zelo extremo, como se fosse seu lugar sagrado, onde sempre poderá se expressar e ser o que é, apresentando sua dança a um público passante. Quando sua felicidade é interrompida, nós sentimos sua ausência naquele chão.
“Pacarrete” traz temas universais, que alcançam a todos nós. Impossível assistir ao filme e não se lembrar de algum idoso com quem tenhamos convivido, como por exemplo, uma tia e ou uma avó ao lidar com as limitações da idade. O filme aborda a loucura, a velhice, o preconceito, as frustrações e a decadência. Uma provável referência seria a “Crepúsculo dos Deuses” (1950) de Billy Wilder, um filme que traz a história de uma estrela veterana do cinema mudo que não se conforma a aceitar que o seu reinado acabou.
O final é onírico, parte para o sonho nutrido por Pacarrete, com seu figurino idealizado e isso nos é claramente apresentado, por meio de uma luz incidental e por um cenário que flutua, dando um tom de realismo fantástico. Sim, é um grande filme com um competente diretor e uma brilhante atriz que faz de “Pacarrete” um obra-prima do cinema nacional!