Os Inquilinos (Os Incomodados que se mudem)

Ficha Técnica

Direção: Sérgio Bianchi
Roteiro: Beatriz Bracher, Sérgio Bianchi, baseados em conto de Vagner Geovani Ferrer
Elenco: Marat Descartes, Ana Carbatti, Umberto Magnani, Lennon Campos, Andressa Néri, Cássia Kiss, Ana Lucia Torre, Caio Blat, Leona Cavalli, Zezeh Barbosa, Sergio Guizé, Ailton Graça, Sidney Santiago, Fernando Alves Pinto, Rui Ricado
Fotografia: Marcelo Corpanni
Direção de arte:Bia Pessoa
Figurino:Izabel Paranhos
Edição:André Finotti
Distribuidora: Pandora Filmes
Estúdio: Agravo Produções Cinematográficas
Duração: 103 minutos
País: Brasil
Ano: 2009
COTAÇÃO: MAIS DO QUE EXCELENTE

Apresentando o ‘Ir’ ao Cinema

Já é conhecido a dificuldade de divulgação dos filmes nacionais. Muitos conseguem apenas um horário em um cinema como foi o caso novo filme do Beto Brant (aqui no blog).O detalhe das exibições do filme em questão, desta postagem, é a discrepância da trajetória. A dicotomia social: o filme passa no Ponto Cine (em Guadalupe – leia abaixo sobre este cinema) e no Cinemark Downtown (Barra da Tijuca). Públicos diferentes, sem a chance da Zona Sul, Centro e afins poderem assistir. Mas se não fosse por isso, não teria conhecido o charme do cinema Ponto Cine (que fica no Shopping Guadalupe).

Apresentando o Cinema Ponto Cine

Imagine um cinema que você possa ler um livro enquanto espera o filme começar, com atendentes simpáticos e atenciosos. Este lugar já existe. É um projeto da primeira sala popuular de cinema digital do Brasil. Os sinais são emitidos por satélite ou via banda larga. O preço apresentado é seis reais, três reais a meia entrada.

A sala, uma “nave espacial” de 73 lugares, observado pelo projecionista Jonathan (Jo Jo) é equipada com poltronas ergonômicas confortáveis, para obesos e casais, com porta copos, que são mais inclinadas, não permitindo que uma pessoa mais alta atrapalhe a imersão na sétima arte. O ar-condicionado não é frio, nem quente, tornando o ambiente perfeito para o filme.

A sessão de sexta-feira a tarde, as 16 horas, foi computada a presença de um público de três pessoas. A minha e a de duas senhoras. Vamos divulgá-lo para que não aconteça o que é normal de acontecer: fechar as portas.

O espaço é voltado para o cinema nacional. Levar os filmes a essas áreas que são impostas por filmes comerciais. Há vários projetos sociais, como exibição dos filmes com a presença dos diretores. É uma excelente iniciativa. Fui embora com a sensação de que quero voltar.

COTAÇÃO DO CINEMA: MAIS DO QUE EXCELENTE

A opinião

O cinema do diretor Sergio Bianchi apresenta a visceralidade da crítica social. As ações estão no limite da paciência. Os culpados são os outros por existerem com suas subjetividades e individualismos e os próprios que se aprisionam na resignação da naturalidade da destruição. A crueldade, a violência e a raiva são elementos utilizados para externalizar a impotência de não se conseguir resolver o que está errado. A existência é feita de outros convivendo com outros, por regras sociais e ditames não compreendidos.

A favela é o ponto inicial para mostrar o próprio preconceito das mesmas pessoas que vivem a imposição da obscuridade de alguns. Os atos violentos de ônibus queimados, armas na cintura, intimidação criam no espectador o ambiente do medo, de não estar seguro em lugar nenhum e que quem criou isso foi a própria indiferença de quem está reclamando.

Aborda a vida de uma família de uma periferia de São Paulo, com suas limitações e pobrezas. Valter (Marat Descartes) e Iara (Ana Carbatti) têm dois filhos. Eles seguem a vida normalmente até que chegam novos vizinhos. Valter trabalha durante o dia e estuda à noite. Sua mulher diz que os novos inquilinos não trabalham, que devem ser bandidos. Ninguém sabe exatamente de onde vieram os três rapazes. Valter não tem uma arma, tem filhos pequenos, fica fora o dia inteiro, não vê o que se passa na rua, ouve o que a mulher diz, o que a rua diz, ouve o barulho da música e das risadas dos inquilinos de madrugada. E não consegue dormir.

A fotografia expressa um documentário ficcional da vida real, com diálogos realistas e com nuances de luz e sombras. A simetria da imagem demonstra as máquinas que os seres humanos se tornaram. Repetem ações, não há vida e nem esperança. Só o momento. As imagens frias da fábrica, como robôs trabalhando sem o pensar e o sentir. O outro não importa mais, tornou-se insignificante. A única habilidade requerida é a de servir bem e sempre. Plano de saúde? Ficar doente? Sair para cuidar de um vizinho morto? Não, claro que não. Esse excesso não pode ser permitido, a vida não pode parar nem um minuto. Se a ‘máquina’ quebrar, enterre-a. “Cada um por si”, diz-se.

A perpetuação da violência repete-se quase recorrente, sendo pleonástica. A violência assistida na televisão é a mesma vivenciada no dia-a-dia que é a mesma repetida por todos eles que gera a curiosidade do sadismo que gera o querer ter mais violência para que se possa contar e presenciar como um reality show ao vivo, sem cameras. A própria alienação do comodismo da visão. É cíclico. Eles nunca conseguiram sair daquilo por buscarem aquilo para viver. “Mulher tem das boas e as que não prestam”, diz-se explicitando o tom negativo e pessimista do pensar.

A crítica acirrada do diretor coloca o apresentador Datena como resumo do que se vê e do que se busca em notícias. O desejo do sensacionalismo, dos jornais de sangues estão com a demanda crescendo, então para compensar, a oferta também precisa ser alta. Quanto mais viver o terror, mais os ânimos acalmam-se. “Por causa de um barulho, tudo muda”, diz-se.

“Quando está tudo tranquilo, aí é que eu fico preocupado”, repete-se a preocupação da espera. A vida precisa dividir espaço com o outro. O axé alto de um carro de rua, a gritaria de uma casa durante a madrugada, bandidos excedendo-se por drogas, crianças usando roupas curtas e de adultos, por ser vendido esta imagem na mídia, gera o olhar pedófilo de um velho que vê naquela figura uma maneira de liberar os seus hormônios doentios. Tudo faz aumentar a revolta de não desejar viver o outro. O meio modifica as pessoas. Muda as suas crenças e crendices. Desperta a ira da mudança e da desconfiança. “Gente folgada, nem um bom dia”, pede-se o mínimo.

“Para isso que serve o muro: cada um do seu lado”, “Tudo é perigoso? Que vida é essa?”, questiona-se todo instante, deixando quem está na cadeira do cinema complemente vulnerável. É uma excelente ‘relavagem’ cerebral. É uma imposição ao contrário. É a volta do querer mudar e do querer não continuar mais no caminho que nada anda.

O filme não dá treguas. A tensão é do início ao fim. Não cria esperanças, ao contrário, retira as que o espectador têm. Chega a ser covarde pela verborragia da violência. Pequenas ações criam a metáfora do futuro que o mundo está se encaminhando. O urinar para marcar território, o latir igual a um cachorro, deixando de ser um ser racional, a dor de cabeça pelo zumbido crescente ditando o liminar da paciência do aguentar. “Com animal tem que implodir”, diz-se.

“Os mediocres sabem capitalizar o caos”, “Livros bem pensados são prostitutas bem pagas”, “Tem gente que gosta de rastejar”, frases da filosofia real do dia-a-dia de referências de “A morte do leiteiro”, de Carlos Drummond de Andrade e “Uma poesia nova”, de Ferrer, são ensinadas em uma escola supletiva, gerando uma interpretação diferente por cada um.
“Você transforma todo mundo diferente de você em inimigo. Assim não tem conversa”, analisa-se.

O mundo está de pernas para o ar. A troca dos papéis sociais faz com que os ‘donos’ dos morros forneçam alimentos aos necessitados, como uma alusão a Robin Hood, que roubava dos ricos para dar aos pobres.

O filme confronta o espectador com a crua realidade, que não é amenizada em nenhum momento, nem nos sonhos. É como se a fantasia tivesse desaparecido há muito tempo. As pessoas se acostumam depois de um tempo vivendo as mesma situação. Quando um resolve declarar o “Chega. Para”, a tregua acontece, mas logo depois recomeça tudo de novo.

Recebeu os prêmios de Melhor Roteiro (Sérgio Bianchi e Beatriz Bacher) e de Melhor Atriz Coadjuvante (Ana Carbati) no Festival do Rio 2009.

Quem for assistir, prepare-se. É um soco no estomâgo. É real demais. É cruel demais. É violento demais, mesmo sem precisar ter o óbvio do sangue. A tensão cria o medo. A manipulação do diretor funciona. E muito bem. A técnica, as interpretações (de todos, sem exceção – perceba a participação do ator Rui Ricardo, como um dos metralhadores), tempo, narrativa, tudo faz com que filme tenha um casamento perfeito. E a sensação que fica depois é devastadora. Muito bom. Vale muito a pena assistir. Recomendo.

O Diretor

Sérgio Luís Bianchi (Ponta Grossa, 1945) é um cineasta brasileiro.
Neto de Luís Bianchi, filho de Rauly Bianchi e irmão de Raul Bianchi, todos fotógrafos, cuja produção ao longo de um século foi responsável pela constituição de um dos mais importantes acervos fotográficos do Brasil, com cerca de 40 mil imagens em vidro. Sérgio estudou cinema em Curitiba e posteriormente em São Paulo, onde se formou na Escola de Comunicações e Artes da USP, em 1972.

Em 1979, estreou seu primeiro filme longa-metragem comercial: Maldita Coincidência. O filme é uma experiência cinematográfica de baixo-orçamento, filmada integralmente num casarão em São Paulo. A idéia do filme surgiu quando Bianchi viveu em uma casa ocupada em Londres. Com ele, moravam pessoas de todas as tribos: desde hippies, punks, imigrados de várias partes do mundo, junkies, artistas e homossexuais. A prefeitura de Londres permitia a moradia, mas não recolhia o lixo, que se acumulava no entorno da casa. O filme de Bianchi retrata esse momento, e o traz para a São Paulo do final dos anos 1970, auge da ditadura militar, em que a única opção do “underground” era a defesa do não ser ‘normal’.

Em 1982, Bianchi realizaria o filme que o tornaria célebre como um cineasta de crítica mordaz à burocracia, à burrice institucional, às mazelas da sociedade brasileira: Mato Eles?. Ganhador do prêmio de melhor direção no Festival de Gramado e do Grande Prêmio do Festival de Cinema da Cidade do México, em 1985, o filme é uma denúncia da situação dos índios Xavante, Guaranis e Xetás, espremidos no meio de uma briga litigiosa entre o Grupo Slaviero, a Funai e o Governo do estado do Paraná. Expulsos de sua reserva, são obrigados à trabalhar no corte e extração de madeira de sua própria reserva, numa madereira criada pela Funai. Nem mesmo o próprio cineasta escapa da denúncia: a cena em que o cacique guarani pergunta ao diretor “quanto dinheiro ele ganha” pra filmar os índios pode ser considerada uma das mais emblemáticas do cinema brasileiro.

Em 1999, foi lançado o seu filme mais conhecido, Cronicamente Inviável, que aborda o caos social em diversas regiões e classes sociais do Brasil.

Finalmente, em 2004, dirigiu Quanto vale ou é por quilo? que traça um paralelo entre a situação do negro no Brasil, antes e após a escravidão e mostra que muito pouco mudou. Em novembro de 2006, o cineasta retornou à sua cidade natal, onde foi homenageado com uma Mostra de seus filmes, pela primeira vez exibidos ao público conterrâneo.

Filmografia

2009 – Os inquilinos
2005 – Quanto Vale Ou É Por Quilo?
2000 – Cronicamente Inviável
1994 – A Causa Secreta
1988 – Romance
1982 – Mato Eles?
1979 – Maldita Coincidência

O Ator

Marat Descartes fez papéis em vários filmes, peças e novelas. Maysa e Alice (HBO), são alguns do seus trabalhos. Em 2008, interpretou Paulão em “É Proibido Fumar” (aqui no blog). E em 2007, “Um Ramo” (curta-metragem), como Chico. Colega de Gero Camilo desde os tempos da Escola de Artes Dramáticas da USP, integrou o elenco de “A Cândida Erêndira e sua Avó Desalmada”, “As Polacas” e “Os Lusíadas”. Ganhou o prêmio Shell de teatro, na categoria melhor ator por sua atuação em “Primeiro Amor”, peça baseada na novela de 1945 de Beckett.

Pix Vertentes do Cinema

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