Orlando, Minha Biografia Política
Do século XX para o século XXI: Woolf e Preciado conversam
Por Paula Hong
Festival de Berlim 2023
Na união entre homenagem, questionamentos e, em certa medida, uma carta-manifesto, Paul B. Preciado tece um diálogo com a obra secular “Orlando”, de Virginia Woolf, para apresentar vivências que atravessam a atemporalidade da obra e a importância dos desdobramentos que o livro carrega. Por intermédio da leitura de passagens do livro feitas por mulheres trans, homens trans e pessoas não binárias, Preciado consegue com “Orlando, Minha Biografia Política” aproximar os dois séculos a partir da fabricação estética-visual moderna que enseja representações nas quais nome e rosto pertencentes a corpos diversos, de origens e idades diferentes, se unem pelas semelhanças das experiências complexas ao passo que enaltece as subjetividades e individualidades de cada uma delas.
A frustração palpável de Preciado frente à profecia de sua biografia um século antes de seu nascimento é transformado em motor para pautar os desafios de vários Orlandos em carne e osso da contemporaneidade, permeados pela burocrática busca de reconhecimento de suas existências: a hormonização, o acesso a atendimentos médicos de qualidade, a rejeição da família e as sucessivas tentativas de “cura” impostas, o trabalhoso processo de fissurar espaços nas paredes impenetráveis na sociedade normativa — problemas já exaustivamente retratados na literatura, no cinema e na mídia, a tal ponto que a associação que se faz a pessoas trans é de agouros em demaseio, e não de deleites.
Preciado não ignore estes fatos, mas os reverte com discussões relativas a gênero e construções de identidades que se inclinam para o acúmulo de experiências que navegam entre gêneros opostos (e, ao mesmo tempo, complementares), como na obra de Woolf, levando em conta a diferença de não magicamente encarnar o personagem, acordado num outro corpo que embarca na jornada acumuladora de outros saberes adquiridos pelos comportamentos e modos de tratamento que recebem perante a sociedade. Assim, sutura, muito habilmente, num variado mosaico, histórias que agrupam semelhanças e diferenças para colocar-se no filme para além da narração — embora ela seja uma constante.
A escolha da leitura de trechos do livro possibilita não somente brincar com a linha que separa realidade e ficção, alinhando-as numa aproximação temática e estética na narrativa pautada pelas vidas retratadas no filme, como também aproveita o espaço fílmico para elaborar discussões em torno da relações (ou falta delas) de gênero para além da binariedade, e o que elas significam dentro da esfera inerentemente política que a existência dessas vidas por si mesmas implica, driblando a irredutibilidade delimitadora de uma obra já terminada. Portanto, Preciado debruça-se sobre a obra de Woolf e, com “Orlando, Minha Biografia Política”, acena para a escritora e a traz para mais perto, ao mesmo tempo que a questiona, alongando a reverberação do eco que a obra tem em sua vida e na de outras pessoas. O resgate é iniciado com Woolf que, ainda no século XX, inserida num contexto de papeis de gênero — e, por conseguinte, com uma abordagem da sexualidade permeada por moralismos ditadores de condutas sociais — demarcados, embora desvios e “errâncias” tenham sido historicamente registrados e cada vez mais resgatados; seja através de produções literárias ou fílmicas, ou por investigações acadêmicas.
O filme de Preciado é, então, um gesto pessoal, crítico e político de dialogar com o passado e o presente, aproximá-los pelas semelhanças, pelas diferenças e pelas implicações concretas do que respinga de um século para o outro mostrando que mudanças estruturais no modo como Orlando (ou, no caso do filme, os Orlandos) é tratado não sofreu grandes mudanças e, por isso mesmo, a retratação das contínuas batalhas, sempre navegando pelos desafios e pequenas, mas não menos significativas, conquistas que eventualmente retornam: a celebrada retificação de nome e gênero em documentos oficiais, a hormonização e o reconhecimento de serem por quem são.
Partindo do vislumbre de Virginia Woolf, a qual já havia pensado e elaborado uma história que tensiona as noções incrustadas de gênero, Preciado anda na mesma esteira ao localizá-las no presente. Trabalha na fruição da ficção e documentário, por vezes suspendendo a cortina que as separa, direcionando a mesma intenção para a dissipação de binariedades de gênero e sexualidades que já não mais correspondem às diversidades existentes no mundo. É um recorte localizado na Europa, claro, mas que ainda permite identificações e aproximações com identidades similares e espalhadas pelo mundo. Talvez seja possível pensar que haverão outros Preciados que irão derivar suas obras a partir “Orlando, Minha Biografia Política”.