One Child Nation
Qual é o limite do Estado? Ou A traição da tradução
Por Roberta Mathias
O documentário “One Child Nation”, ao discutir a política do filho único na China (adotada durante 35 anos), investiga, através do olhar de duas cineastas nascidas durante a vigência da lei, as consequências dessa implementação.
Ao colocá-la como política de controle para a melhoria de vida de uma população que crescia exponencialmente, o Governo escondeu um esquema de tráfico de bebês que acabou por marcar gerações. É a partir dessas cicatrizes que as diretoras fu trabalham as relações familiares e a atuação do próprio Estado chinês.
A complexa rede de cooperação entre chineses e governo contou com uma forte propaganda que apelava para uma estética tradicionalista e facilitação da adoção internacional. A lei vigorou de 1971 até 2015 produzindo uma série de materiais didáticos para pais e crianças como músicas, livros, panfletos, cartazes de rua e espetáculos no quais podia-se contemplar a linda família chinesa feliz com pai, mãe e uma única criança. Essa estrutura familiar era também monitorada pelo próprio governo da República Popular da China utilizando fiscais nos pequenos vilarejos para controlar uma pontuação que funcionava de acordo com a obediência da família às regras implementadas pelo Estado.
A sugestão de uma família enxuta era apenas uma das possibilidades de conseguir estrelas em placas que ficavam penduradas na fachada das casas. As estrelas não atuavam simplesmente como função simbólica de aceitação social, mas também faziam com que aquela família fosse retribuída através de auxílios que muitos não podiam recusar.
Nesse cenário, a cineasta Nanfu apresenta a própria família que, ao optar por um segundo filho, quebrou o padrão esperado. Assim, parte do nascimento do próprio filho, estadunidense, para resgatar suas memórias de infância e revela que durante muitos anos sentiu vergonha do irmão na escola e nos núcleos sociais que frequentava – o que nos chama atenção para o fato de que a eficácia de coerção do Estado passa também e, às vezes, principalmente pela aceitação social.
Peço licença para sair um pouco do papel de crítica e me colocar no papel de antropóloga- o qual também exerço. Talvez, falte ao filme um exercício de tradução e interpretação cultural mais amplo. Por coincidência- e, também, um pouco de faro- no dia posterior à experiência cinematográfica com “One Child Nation”, peguei em mãos um livro que há tempos gostaria de ler: Alteridade Imagem Etnografia. Apesar de ser um livro sobre Antropologia Visual e abordar técnicas para entrar e sair de espaços (em um sentido de territorialidades, mas também de cultura) a ideia do primeiro artigo, escrito por Alessia de Biase, me capturou.
E a ideia de Alessia me capturou justamente por ainda estar com as questões do documentário flutuando como fantasmas em minha cabeça. A autora no provoca lembrando que toda tradução espacial é uma questão de experiência. “Traduzir é uma questão muito forte de como transformar o outro no nosso”. A partir desse ponto, eu já não pude mais deixar de fazer relações com a experiência que tive ao assistir “One Child Nation”.
A Nanfu que retorna à China para pesquisar os reflexos da política do filho único é uma Nanfu embebida pela experiência cultural estadunidense. É bem possível que a grande problematização do filme seja mesmo os limites do Estado sobre os corpos dos sujeitos. Não à toa, uma das sequências que me pareceu das mais interessantes, foi justamente sua abertura. Ao alternar corpos de soldados extremamente sincronizados ao corpo de um feto ainda no líquido amniótico, o filme traduz de maneira visualmente provocante o seu foco. Tradução que depois me pareceu afrouxar ao longo do filme.
Porém, ao esquecer que agora é, ela própria, uma mescla – entre China e Estados Unidos- Nanfu parece se perder em sua própria tradução da cultura chinesa. Em alguns momentos, o filme soa invasivo e irônico- mas não consegue explorar de maneira respeitosa essa ironia. Sim, algumas ironias podem ser respeitosas. E essas sempre me parecem mais inteligentes.
É sobre a difícil relação entre família e sujeito e Estado e cidadão que caminha a equipe atrás de rastros que possam conectar corpos separados a favor de um pretenso bem da coletividade. Mas, nessa busca, o filme parece invadir as personagens- que, não custa lembrar, são reais- em uma exposição por vezes desnecessária. A crítica à cadeia de comanda chinesa parece bem mais poderosa do que a crítica ao falso puritanismo americano. Quando se aventura por esse lado, Wing nos revela uma característica que poderia ser mais interessante para seu documentário.
Quais seriam os limites e as consequências de todas nossas decisões se fossem completamente individualizadas? Ao mesmo tempo, até que ponto tem o Estado o poder de controlar o corpo do cidadão? Essas questões se impõem ao Estado da China, mas também aos Estados Unidos da América. Pontos que a própria Wing nos revela saber quando diz que os Estados Unidos também operam um controle sobre o corpo feminino ao não permitirem o aborto. Por que não explorar mais um pouco as críticas ao país no qual mora atualmente?
Novamente, sei que o filme não é sobre as limitações estadunidenses, mas dado o tema e o contexto, me pareceria mais interessante algo que explorasse o limiar que é viver em qualquer Estado. Não pretendendo dar uma interpretação única ao filme, pois entendo essa própria crítica com uma tradução da traição da tradução – talvez, seja ela mesma uma traição, já que minha experiência estadunidense é pouca e a chinesa nenhuma: toda tradução é uma interpretação. Há sequências interessantes como a já citada abertura e a utilização de imagens de arquivo e contemporâneas da propaganda estatal. Somente creio que “One Child Nation” poderia explorar melhor seu próprio descolamento espaço-temporal.