Onde Eu moro
Como a torneira na lateral do prédio pode se tornar uma cozinha
Por João Lanari Bo
Telluride Film Festival 2021
“Onde eu moro”, média-metragem dirigido em 2021 pela dupla Pedro Kos e Jon Shenk – indicado para o Oscar – desvela a zona de desconforto da assepsia urbana idealizada da classe média, em especial aquela que habita as grandes cidades da costa oeste americana: São Francisco, Los Angeles e Seattle. Como é possível um ambiente de grandes investimentos imobiliários, como são os centros desses aglomerados – uma estratégia de marketing visual que parece obcecar arquitetos e urbanistas norte-americanos, fascinados por skyline e fachadas – de repente, não mais do que de repente, abrigar tendas e moradores sem teto, pessoas expostas ao fluxo público e todas intempéries possíveis? A efetividade da linguagem deste documentário, ao abordar um assunto tão saturado nas reportagens dos local News da TV é, sobretudo, escapar da rotineira mirada preconceituosa, e fazer o contraponto das ensolaradas imagens das metrópoles com depoimentos pungentes de cidadãos e cidadãs – excluídos pela ordem dominante da visualidade mas, teimosamente, presentes. Os realizadores citam o clássico “Koyaanisqatsi”, dirigido em 1982 por Godfrey Reggio, como grande influência: a música progressiva de Philip Glass, alternando lapsos e agitação com tomadas aéreas e em movimento, sugere uma inevitável interconexão entre vida humana e natural. No filme em tela, a interconexão se passa entre a população sem abrigo e os arranha-céus estampados como folheto de propaganda de imobiliárias. Planos gerais, drones e angulações enfatizam detalhes arquitetônicos – mas o documentário não informa com precisão as cidades em que filmou, induzindo o espectador a tirar suas próprias conclusões e a experimentar o impacto emocional da linguagem. Uma linguagem que é capaz de penetrar em seus poros e mudar sua perspectiva, diz Kos.
São Francisco e entorno, a famosa Bay Area, é a meca do capitalismo liberal americano – ali estão quatro dos dez condados de custo de vida mais caro dos Estados Unidos. O forte crescimento econômico criou centenas de milhares de novos empregos, mas, juntamente com severas restrições à construção de novas unidades habitacionais, resultou em uma extrema escassez de moradias que levou os aluguéis a níveis extremamente altos. Em 2019, acreditava-se que a cidade tinha aproximadamente 8 mil moradores de rua, 5.180 dos quais desabrigados, e 3 mil crianças. São muitos os motivos que levam à situação de sem-teto. Segundo pesquisa naquele mesmo ano realizada com apoio da Prefeitura de São Francisco, mais de um quarto (26%) dos entrevistados identificou a perda de emprego como a principal causa de sua falta de moradia: 18% relataram drogas ou álcool, 13% identificaram despejo da residência que ocupavam, 12% relataram conflito com room mate ou membro da família, e 8% citaram problemas de saúde mental. O relatório salienta que a causa primária da incapacidade de um indivíduo em obter ou manter moradia é difícil de identificar, pois muitas vezes é resultado de motivações múltiplas e compostas. “Onde eu moro” trafega nesses universos com delicadeza e assertividade, mostrando relatos reais sem descambar para o sentimentalismo fácil. A situação é dramática: em 2018, a relatora especial para moradia da ONU, Leilani Farha, visitou diferentes acampamentos de sem-teto em São Francisco e comparou as condições que testemunhou com as de Mumbai, na Índia. Segundo ela, a Califórnia é um estado rico, por qualquer medida, os Estados Unidos são um país rico, e ver essas condições deploráveis que o governo está permitindo, pelos padrões internacionais de direitos humanos, é inaceitável. Para ela, os moradores de rua que viu são tratados como nada. Às vezes eles dizem que os pertences são guardados, mas na maioria das vezes os pertences são jogados em uma lixeira. É horrível. Não é digno. As pessoas não têm para onde ir. É ilógico. É trágico.
Desnecessário sublinhar, para nós brasileiros o drama dos moradores de rua é imediato e incontornável. Pedro Kos, o brasileiro correalizador de “Onde eu moro”, obviamente carregou a convivência das nossas cidades para o país que emigrou, quando adolescente. Para ele, o filme é mais do que um documentário: a gente queria trazer o olhar humano, e situar aquela humanidade numa realidade quase distópica. De repente a gente se vê quase vivendo num filme de ficção científica, mas é a realidade. Para arrematar, ele e o parceiro Jon Shenk planejaram convidar alguns dos entrevistados para a cerimônia de premiação do Oscar – um dos ambientes mais assépticos do imaginário televisivo global. Um verdadeiro retorno do real no templo da ilusão.