Curta Paranagua 2024

O Túnel dos Pombos

Casa de Espelhos

Por João Lanari Bo

Festival de Telluride 2023

O Túnel dos Pombos

O que acontece quando duas inteligências se encontram, versam e tergiversam sobre os feitos de um deles, John le Carré, célebre escritor de livros de espionagem, milhões e milhões vendidos em todo o mundo? “O túnel dos pombos”, filmado pelo talentoso Errol Morris e lançado em 2023, é o resultado, um doc-biográfico-ensaio que não realiza proezas revelatórias – mas que mergulha e exala a materialidade labiríntica de alguém que se dedicou a escrever sobre dúvidas e angústias de espiões, duplos ou não.

Não há centro para um ser humano, afirma le Carré – cujo nome verdadeiro é David Cornwall – e é submetido a um interrogatório prazeroso, utilizando linhas de suas memórias publicadas em 2016 intituladas “The pidgeon tunnel”. Ou seja, não falando nada de novo (cinematograficamente, porém, tudo é novo). Morris, voz eloquente no background, profere o argumento – o que é o caráter de um agente duplo? O que motivou Kim Philby, chefe da inteligência britânica que, em 1963, se revelou agente da União Soviética?  No mundo real (e imaginário) da espionagem, em plena Guerra Fria, um salto desses não tem chão racional que explique. Era um traidor – e foi fundamental para a formação do escritor e também para a carreira de espião (le Carré teve uma breve passagem nos notórios MI5 e MI6 antes de dedicar-se à literatura).

Um espião sobrevive, como é sabido, em um mundo paralelo, sempre um passo à frente da vida burocratizada que nós, os mortais, experimentamos. Essa é a versão glamourizada da profissão, cristalizada por James Bond nas suas aventuras: em “O túnel dos pombos” a conversa é outra. Cornwell fala do malabarismo que esses sujeitos-invisíveis operam com a própria personalidade, excitados com a esquizofrenia autoimposta com que trafegam no meio social. Claro, uma tal multiplicidade traz riscos enormes – e transforma-se em vício, como uma droga, muito além de clivagens ideológicas. Philby – boa família, boas escolas, charmoso, hábil – não tinha porquê desertar. Bill Haydon, um dos personagens de “O Espião que sabia demais”, sucesso maior de le Carré, foi sacado diretamente em Philby.

O túnel dos pombos” usa e abusa dos “ângulos holandeses” – enquadramento no qual a câmera tem seu eixo alterado para que as linhas da imagem, verticais e horizontais, fiquem em ângulo em relação às bordas do quadro – de espelhos no set, que refratam a imagem, de recortes de anúncios e títulos dos livros, também com eixo alterado, e de clipes dos inúmeros filmes baseados na obra de John le Carré. Não faltam também recriações estilizadas com atores, ao gosto do diretor. A linguagem é um túnel, para Morris e para o escritor – os pedaços de real vão e vem, a tarefa do artista é abstraí-los e inscrevê-los no código da linguagem. Quando David Cornwall adolescente foi a Montecarlo com seu pai, ficou estupefato com o túnel dos pombos – homens ricos atiravam em pombos criados e depois forçados através de um túnel até à costa, onde seriam sumariamente abatidos pelas pessoas que os esperavam. Os que escapavam retornavam ao viveiro, em cima do telhado.

O que faz o filme de Errol Morris uma verdadeira casa de espelhos, contudo, não são apenas detalhes gráficos e artimanhas de linguagem – é, sobretudo, a relação especular de John le Carré com seu pai, Ronnie. Vigarista confesso e bon vivant, Ronnie administrou sua família como quem administra uma roleta – a mãe abandonou a casa quando David tinha cinco anos, e ele só foi reencontrá-la quando tinha 21. O mundo é instável, qualquer opção pode ser a pior, ou a melhor, e fraudes podem resolver impasses, ou não. David conta como foi viver em padrões acima da renda auferida pelo pai, sempre fugindo de credores, e, eventualmente, preso. Um trambiqueiro compulsivo, mas que pagou boas escolas para o filho sabe-se lá como – e teve a pachorra de cobrar no fim da vida, quando le Carré era famoso e rico.

A vida e a obra de David Cornwall configuram uma bem sucedida peregrinação por tortuosos caminhos, de alguma forma consolidados na sua imaginação literária. Em algum momento da entrevista para o filme, concedida em 2019 (ele morreu em 2020), le Carré diz:

Em uma certa idade, vocês querem a resposta. Vocês querem o pergaminho enrolado no quarto mais íntimo que lhes diz quem dirige suas vidas e por quê. O problema é que, a essa altura, vocês são as pessoas que melhor sabem que o cômodo mais íntimo está vazio.

4 Nota do Crítico 5 1

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