O Tigre Branco
Já que tenho um poder ilimitado, vou produzir um tigre
Por João Lanari Bo
Netflix
A frase é de Jorge Luis Borges, escritor dos escritores, um sujeito que tinha uma obsessão fóbica pelos tigres. E quem não tem? Um tigre branco, um fantasma que camufla cores como se estivesse numa paisagem gelada, mais ainda. Na Índia, país dos tigres, o tigre é motor da mobilidade social, única força capaz de quebrar o tão conhecido sistema de castas, essa relíquia histórica que desafia exegetas e governantes, gás paralisante da sociedade. Pois a Netflix resolveu colocar o dedo na ferida nessa complexa região conhecida pelo recorte político-geográfico como Índia, caldeirão dos caldeirões, culturais e religiosos. Convocou um diretor iraniano-americano, Ramin Bahrani, e um time de profissionais afiados, com destaque para Ava DuVernay (provavelmente a produtora mais requisitada nos EUA) e Priyanka Chopra Jonas, a indo-americana que fez o principal papel feminino e atuou também como produtora-executiva.
A escolha do diretor foi quase natural: o premiado autor do livro que deu origem ao filme, Aravind Adiga, dedicou-o a Bahrani, de quem se tornou amigo durante o tempo de estudante na Columbia University. O iraniano-americano realizou recentemente Fahrenheit 451 (2018) para a HBO; antes seus trabalhos estabeleceram uma vontade de evitar sutilezas em favor de mensagens sociais claras e uma história satisfatória, como em Adeus (2008), tendência que aperfeiçoou em “O Tigre Branco”. Aqui, o material é contundente e passado como um tiro, sem medo de deixar rastros sangrentos no caminho, mas também com tiradas de humor. A solução é simples e eficiente: Balram, o social climber que sai da pequena aldeia, faz jus ao título de Tigre Branco e literalmente carrega o filme nas costas, começa os trabalhos escrevendo um e-mail para ninguém menos que Wen Jiabao, à época Vice Primeiro-Ministro chinês, que se preparava para uma visita à Índia; sua voz é a voice-over que conduz a narrativa em flashback, fornecendo um ritmo infalível de entretenimento – do ponto de vista do sôfrego espectador da Netflix – a exemplo, para citar apenas um bem sucedido, de Os Bons Companheiros, da matriz Scorcese. No cardápio de recomendações à autoridade, Balram define o empresário moderno indiano como uma combinação de opostos: “direto e desonesto, zombeteiro e crente, astuto e sincero”. Se chegou ou não ao destinatário, pouco importa.
A alusão ao vizinho gigante não é casual: a Índia quer emular a inserção que a China operou na ordem global, sobretudo na economia. Se a população de ambos é equivalente – a assombrosa cifra de quase 1.4 bilhão de habitantes, cada um com 1/5 do total mundial – está na hora de emparelhar as potências e repetir a incrível escalada dos chineses. “O Tigre Branco”, portanto, é uma fábula sobre a inclusão da Índia na cadeia mundial de produção, cuja primeira etapa é a terceirização de serviços, como os call-centers. Partindo de um olhar cético em relação ao impacto da globalização nas castas mais baixas, vítimas de uma estrutura arcaica de proprietários cercados de milicianos, o filme incorpora uma espécie de acidez que joga com o estatuto da servidão incondicional introjetado em Balram: sua trajetória é a deglutição (e superação) de todos os entraves psicossociais entalados no seu entorno, da avó exploradora ao patrão (falsamente) ocidentalizado, passando pelos resignados motoristas, além do cenário de mendicância atávica que costumamos associar, voluntariamente ou não, à paisagem urbana indiana.
Os países asiáticos vão capitanear o planeta, brada Balram, instalado em Bangalore, o Vale do Silício do subcontinente indiano. Seu negócio é apenas uma moderna e bem gerida empresa de táxi, sem os empecilhos antiquados das relações de poder entre castas. A história, entretanto, se passa nos anos 90: hoje Balram estaria à frente de uma fintech. A Netflix, com sua base de 204 milhões de assinantes no final de 2020, 37 milhões de novos usuários no ano passado, ano da pandemia – e um lucro de mais de US$ 6,5 bilhões entre setembro e dezembro de 2020, com suas ações valorizando mais de 12% – vai ter de ir além da esperteza dos algoritmos para manter sua audiência, diante dos poderosos competidores que se avizinham, Amazon Prime e sobretudo Disney. Investir em produções fora da curva é uma estratégia cara e ousada, mas bem-vinda: Bahrani, como os demais diretores contratados, repetiu em alto e bom som que teve liberdade total para trabalhar. Eufórica, a atriz Priyanka Chopra Jonas postou no início de fevereiro que a adaptação cinematográfica de Ramin Bahrani alcançou o primeiro lugar no serviço de streaming em 64 países, sendo vista por 27 milhões de famílias nas primeiras quatro semanas. “É tão emocionante para mim ver a descoberta e aceitação desta história incrível e brilhante”, escreveu ela no Instagram, “o Tigre Branco sendo abraçado por públicos em todo o mundo é inspirador. Parabéns e obrigado a todos os envolvidos. Obrigado Netflix por dar asas ao nosso pequeno filme.”