O Tablado e Maria Clara Machado
Teatro e Maria Clara Machado: Legados de elo indissociável
Por Paula Hong
Em meio a reminiscências do ainda crescente descaso para com a cultura nacional, o documentário “O Tablado e Maria Clara Machado” lança luz sobre a basilar importância do teatro ao retratá-lo não somente como parte da formação uterina de artistas, críticos e diretores brasileiros reconhecidos — Andrea Beltrão, Bárbara Heliodora, Cacá Mourthé, Cico Caseira, Leandro Hassum, Maria Clara Machado e Marieta Severo, para citar alguns —, mas também ao resgatar a correlação do visionário projeto-sonho de Maria Clara Machado, criadora do Tablado, e as transformadoras experiências de quem passou pelo local, mesmo que para apenas uma aula.
Através da estrutura clássica documentária, os entrevistados referem-se a ela no passado, no entanto suas falas rememoram-na com afetuosidade: são eles quem, com propriedade das experiências, falam sobre a figura inesquecível de Maria Clara Machado e suas criações teatrais. É com a edição inteligente que as falas interligam-se numa narrativa consensual e unânime quanto à relevância do Tablado e sua idealizadora — é como se fosse uma grande conversa que se completa com impressões individuais mas sem serem previamente discutidas. Desta forma, com memórias que não necessariamente seguem uma linha temporal, somos apresentados à origem do Tablado, aos ideais, à didática e à condução orgânica do teatro.
Durante as entrevistas, os atores e as atrizes, os diretores e as diretoras, os críticos e as críticas de teatro, os funcionários (cada pessoa às vezes intitulada não somente uma dessas “funções”, mas duas ou três mais) estão no Tablado já reformado, porém afavelmente remontam às suas vivências no teatro quando a maior simplicidade estrutural oferecia margem para criações artísticas fluírem através de esforços conjuntamente elaborados — fazia-se muito com pouco, e cada contribuição, por menor que fosse, ajudava a montar um espetáculo, dava vida às peças.
Mais do que teatro, o Tablado foi escola. Encabeçada por Machado, a formação integralizadora de todos que frequentaram o local e usufruíram do que foi oferecido refletia os ideais essenciais dela: apresentava-se um leque diversos de funções (escritor(a), diretor(a), ator, atriz, figurinista, cenógrafo(a), produtor(a), iluminador(a) de palco) que poderiam ser afunilados com a experiência, mas que eventualmente acabavam por ser incorporados por todos, formando “gente de teatro”, como afirma um dos entrevistados. Assim, formava-se um todo orgânico que fugia da lógica da especialização (hoje exigida pelo mercado) e todos ganhavam consciência da relevância que cada papel exercia dentro da engrenagem criativa e espontânea por detrás ou não das cortinas.
Essa organicidade transitória de funções é muito bem representada no documentário quando, sob um filtro monocromático, os entrevistados (mesmo não sendo atores e atrizes) interpretam textos de diversas peças de Maria Clara Machado, as quais posteriormente rendem falas que perpassam por uma escala variada de sentimentos, indo de memórias apaixonadas e emocionadas até engraçadas — deste modo, as entrevistas em cor são o que acontecem nos bastidores enquanto que as interpretações teatrais (como “Pluft” e “O Cavalinho Azul”) monocromáticas e improvisadas funcionam como as peças que nunca vimos.
Intercalando entrevistas com imagens de arquivo — mesmo que estas compunham o filme com menos frequência — em “O Tablado e Maria Clara Machado”, a diretora Creuza Gravina faz um exercício muito interessante de construção imagética (e arriscaria dizer até sentimental) de alguém e de um lugar através da montagem memorial daqueles positivamente impactados pelas experiências vividas. Para quem não é do Rio de Janeiro, para quem não passou pela formação integralizadora do Tablado, para quem não cruzou caminhos com Machado e demais integrantes do teatro, o filme é uma ponte que permite saber do valor cultural que criação e criadora exerceram na vida daqueles que fizeram parte do projeto.
“O Tablado e Maria Clara Machado” faz jus à história de quem viveu pela arte, e cujos métodos de inclusão daqueles que mesmo sem saber muito bem como funcionava aquilo tudo, apaixonaram-se pela singularidade com que Ana Maria Machado concretizou seus ideais artísticos: através da confluência do diferente com a simplicidade. As criações artísticas eram meros resultados do conjunto de esforços espontâneos e divertidos que advinham da primeira lição, absorvida consciente ou inconscientemente: é preciso conviver e conhecer o ser humano antes de partir para a expressão artística. Sem nós, seres humanos, não há arte. Como é mostrado no documentário, o Tablado coleciona histórias que corroboram com os ensinamentos vitalícios de Maria Clara Machado pois, enquanto houver gente, haverá memória, haverá criadores, e haverá arte.