O Samba é Primo do Jazz
Festa de família
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Gramado 2020
A crise pandêmica que nós passamos no atual momento, especialmente no Brasil, está mudando a forma de olhar a arte. Filmes agora ganham estreias em streaming, ressignificando a tradição das salas de cinema. Os festivais também precisaram se reinventar e apresentar suas seleções pelo caminho do online. É o caso da 48a edição do Festival de Gramado, que acontece pelo Canal Brasil, transmitindo, aberto ao público, democrático e inclusivo, os longas e curtas-metragens competitivos, brasileiros e internacionais. A quarta noite exibiu o longa-metragem brasileiro “O Samba é Primo do Jazz” (2020), sobre a cantora Alcione, um dos indicados ao prêmio Kikito de Melhor Filme.
Sua realizadora Angela Zoé (dos documentários “Henfil” e “Meu Nome é Jacque“) conduz o espectador a observar e a acompanhar a “patroa do vozeirão” pela montagem-costura das imagens de arquivo. Busca-se o lado artista da Alcione, ainda que a intimidade se exponha pelas memórias familiares, inseridas com narrativa clássica, mais livre e orgânica, tentando assim resgatar a essência que precede a projeção do ser. Nós assistimos os ensaios para os shows, seu aniversário de 70 anos na Mangueira, nos bastidores e no silêncio do carro, e confessar que “não está morta” e que deseja sexualmente um “português Kevin Costner”. …
“O Samba é Primo do Jazz” é acima de tudo uma homenagem à paixão incondicional de Alcione pelo cantar. De “inventar moda” e misturar estilos, principalmente pelos que “aprendeu” nos anos da noite como Crooner. A “marrom”, que aqui não é chamada assim nenhuma vez, mas que já foi nome de telefilme dirigido pela documentarista, “Eu Sou a Marrom” (2019), recebe novos adjetivos e “definições”: romântica, que “foi macho quando precisou” construir a carreira, “sensual” no programa de entrevistas de Irene Ravache. A homenageada maranhense de São Luiz (“capital brasileira do Reggae” “Meu tesouro e Meu torrão” – música de seu álbum de 1984 – que aqui vira “viagem” tendo Alcione como Guia de Turismo), e mangueirense (um de seus “abrigos da vida, se não for o maior”) mostra-se vaidosa, sempre arrumada, e rigidamente meticulosa ao definir tons, notas, ordens das músicas e surpresas para a hora do show.
Alcione, que estudo música (aprendeu trompete e pistão), abre-se, com “marra carioca” (com “sinteco na voz”), fazendo piadas e gírias, quase gaiatas, da “Velha Guarda” (“Se não for brincar não desce pro meu play”). “Eu quero que você seja feliz, mas eu quero que você fique”, diz-se sobre ser acolhido pela cantora. O filme intercala as entrevistas que a artista foi convidada, como por exemplo, Marília Gabriela e Hebe Camargo, até mesmo a metalinguagem, ao exibir a Alcione as imagens de uma entrevista antiga de sua mãe e irmã (e esperasse uma resposta como se fosse um arquivo confidencial). Mas a maestria do filme está mesmo nos imagens de arquivo, em especial uma conversa-entrevista da “patroa” com Grande Otelo.
Nós ficamos sabemos que seu pai teve 35 filhos. Que foi criada ao som do tambor de crioula (típico do Maranhão), que tem voz à la Louis Armstrong, que diz “que não é sambista não”. Que cantou com Beth Carvalho, Caetano Veloso, Maria Bethânia, Nara Leão, Cartola, tudo “influência do jazz”. “O Samba é Primo do Jazz” é uma imersiva experiência musical e autobiográfica (de livre organicidade), de reunir histórias e, mesmo que a diretora, que dividiu o roteiro com Luís Abramo, não tenha optado por confrontar (criando assim um documento “chapa branca”, mas com uma única tentativa da diretora ao perguntar sobre se o “desejo ainda existe na velhice”), atinge o objetivo esperado: a homenagem (tom ambiente de uma festa de família, entre primos, irmãos e amigos), enaltecida em seus pontos fortes.
Angela Zoé não quer a polêmica, a fofoca, a picuinha, e sim mostrar a música por trás da receptora. Dessa hospedeira tupiniquim que ainda quer “desencalhar” no amor, porém diz categoricamente “quando você dorme atravessado na cama King Size, você não quer mais ninguém lá pra dividir dormindo junto”. Desse “vozeirão” que viajou o mundo levando sua música. O longa-metragem é um mergulho na memória de nossa música brasileira. Contrói-se agora uma curadoria-relíquia de imagens, em uma edição que privilegia o agora e o passado, que faz com que o Brasil não seja só reapresentado, mas também que possa conviver pacificamente com o que passou, provando por a + b que os dois tempos podem se fundir em um só pela necessidade urgente de preservar nossa brasilidade.