O Que Ela Disse? As Críticas de Pauline Kael
Se Confunde em Relação à sua Biografada
Por Pedro Guedes
Durante o Festival do Rio 2019.
Se analisarmos toda a História da Crítica cinematográfica, encontraremos poucas figuras tão influentes – ou, no mínimo, tão marcantes – quanto Pauline Kael. Responsável por inspirar uma geração inteira de profissionais da área, a crítica também ajudou (em boa parte) a alavancar a Nova Hollywood, conferindo visibilidade aos cineastas norte-americanos que buscavam mudar o cenário do Cinema norte-americano e consagrar aquela que ainda hoje é considerada uma de suas fases mais ambiciosas (tanto estilística quanto temática). Ao longo de sua carreira, Kael jogou um holofote em cima de diversos realizadores que ainda não haviam ganhado a voz que mereciam, o que é não só um feito notável, mas uma prova de seu interesse em ver a Arte evoluir de fato. E, como se não bastasse, ela era uma escritora admirável, que sabia utilizar as palavras perfeitamente a seu favor e que encarava suas críticas não como listinhas de “prós” e “contras” dos filmes aos quais assistia, mas como verdadeiras obras artísticas, combinando uma prosa esteticamente irresistível com ideias perfeitamente articuladas/defendidas. Até certo ponto, “O Que Ela Disse? As Críticas de Pauline Kael” se sai razoavelmente bem neste sentido.
Dirigido por Rob Garver e produzido a partir de uma campanha de financiamento coletivo, o documentário aproveita seus 95 minutos de projeção para mostrar o quanto a paixão de Kael pela Sétima Arte era legítima – e, mesmo quando defenestrava uma obra, era porque levava o Cinema a sério demais para permitir que um filme ruim o desrespeitasse. Sua reverência ao Cinema, claro, se estendia à qualidade de suas análises fílmicas, que sempre faziam questão de defender o ponto de vista da autora com uma segurança notável; ela realmente acreditava em cada palavra que escrevia. Além disso, o documentário acerta ao retratar como a qualidade da escrita de Kael era fruto não só de seu gosto por Cinema, mas também de outra paixão particular: as palavras. O domínio destas aliado ao conhecimento literário faziam parte de quem Pauline Kael era – e Garver mostrar isto é um mérito inquestionável.
Por outro lado, é uma pena constatar como o cineasta parece equilibrar os acertos de sua abordagem com tantos outros tropeços, sendo o maior – e mais fatal – o fato de fazer Pauline Kael soar não como uma profissional de personalidade dura e bem determinada, mas como uma crítica simplesmente implicante, que parece ter vontade boba de perseguir certos diretores apenas por estes produzirem obras um pouco mais óbvias de serem aclamadas. Observa-se um hábito do documentário estabelecer a opinião da biografada como contrária à de todo o restante da Crítica internacional sem se concentrar nos critérios empregados pela autoria – e que, obviamente, nos fariam entender seu ponto de vista como algo além de uma simples “vontade de ser diferentona“. Essa abordagem contribui para que o público não familiarizado com sua figura a enxergue como uma pretensa polemista. Como se não bastasse, “O Que Ela Disse? As Críticas de Pauline Kael” ocasionalmente sugere (sem querer?) que ela adorava tachar certos filmes como “mais” ou “menos” Cinema, como se o intuito fosse apenas polemizar. Todavia, qualquer um que conheça um pouco de seus textos sabe que esta não é a verdade.
Decepcionante ao se concentrar, na maior parte do tempo, nos aspectos mais óbvios da figura pública/profissional de Pauline Kael, o longa-metragem se apresenta como formulaico, burocrático e pouco esclarecedor em sua maneira de encarar a crítica retratada na tela, sendo particularmente frustrante perceber como algumas informações a respeito de sua vida pessoal são resumidas a três ou quatro verbetes curtinhos jogados de forma arbitrária nos últimos minutos da projeção, antecedendo os créditos finais (ok, entendo que o foco do documentário não era mostrar as lutas privadas de Kael, mas… ora, é melhor simplesmente não mencioná-las do que mencioná-las superficialmente, não?). Se somarmos isto à rigidez formal do projeto como um todo, que mais parece a versão estendida de uma reportagem feita para ser inserida no meio de um programa de TV maior, logo notamos o quão decepcionante foi o resultado deste projeto.
O que faltou, portanto, não foi apenas ambição, mas uma noção um pouco mais empática e menos pedante de quem foi a tal crítica cinematográfica. Sim, suas palavras podiam soar polêmicas e, às vezes, duras demais, mas isto não quer dizer que fossem cruéis – no entanto, Rob Garver e seu “O Que Ela Disse? As Críticas de Pauline Kael” não só parecem enxergar tais palavras como, sim, cruéis, como ainda acreditam que esta “crueldade” é… bem, a prova do gênio de Kael.
Em outras palavras: é um documentário que muitas vezes se confunde em relação à natureza profissional e ética de sua biografada. Que pena; Pauline Kael merecia mais.