O Quarto ao Lado
Um filme que dá vida e frescor à morte
Por Fabricio Duque
Assistido durante o Festival do Rio 2024; Festival de Veneza 2024
O cinema de Pedro Almodóvar está além de conceitos sã filosóficos e razões pré-definidas. Seus filmes acontecem na subjetividade pragmática de quereres instintivos. Suas personagens, entre idiossincrasias, surtos, neuroses e consciências, transitam na liberdade do pensar, do ser e do agir. O mundo de Almodóvar, de temática orgânica, existe na individualidade lúcida (ou lúdica) de cada um, essa que respeita a empatia do outro, mas também é enérgica o suficiente para indicar ou provocar limites. Em “O Quarto ao Lado”, exibido na mostra competitiva do Festival de Veneza 2024, saindo vitorioso com o Leão de Ouro de Melhor Filme, Almodóvar corrobora que é um cineasta que sabe usar sensibilidades a seu favor, em uma grande maestria de orquestrar emoções reais e consequências sentimentais naturalistas. Almodóvar acolhe e entende os dias mais melancólicos, nublados e tristes, os humanizando, porque são parte da vida, e mitigando as necessidades mundanas-sociais da felicidade tóxica. De se ter que aparentar alegria o tempo todo. Aqui, há a captação de uma metafísica racional, que a própria personalidade da existência de quem as sente, numa flexível, perspicaz e adulta introspecção retro-alimentada.
“O Quarto ao Lado”, baseado no romance de Sigrid Nunez, traz o realismo da ideia do que é vida, naturalizando seus estágios básicos de fim da existência humana – uma experiência-direito de cada um. Quando Almodóvar desmistifica a morte pelo racional e pela referência metafórica da substituição sentimental a outra pessoa, como uma escritora que escreve “para aceitar a morte” e é “convidada” para “assistí-la”, parecendo uma reconstituição do livro. Nós somos imersos em um universo paralelo, de sonho acordado, de coma induzido, de suspensão do tempo. Assim, só que realmente é importante, mais necessário e profundo ficará. O resto será levado pela superfície, entre close estendido das personagens e diálogos-monólogos. Essa atmosfera é proposital: uma relação mais socialmente artificial, mas sem nenhuma emoção manipulada. Sim, somos convidados a sentir a construção desse tempo de casualidade projetada. Lembranças são contadas pela relatividade da verdade.
Em torno de tudo isso, “O Quarto ao Lado” tece uma coloquial mise-en-scène de contradições, instantes, cenas e memórias, em que o detalhe de um objeto convive plenamente em total equilíbrio com o clássico, especialmente pela música, o jazz, por exemplo. “Tem que ter talento para pegar coisas do lixo (e ressignifica-las)”, diz-se. Há uma elegância intelectual não encenada. É tão naturalista, possível e genuína que recebemos tudo isso sem nem perceber que tudo isso está milimetricamente conectado não só à trama, mas está estimulando, principalmente, nossas sinapses de interligações. Sim, é um filme de induzida cognição comportamental pela mente. Almodóvar brinca em sua narrativa quando quer criar outro tom mais de suspense. É, lembramos de Hitchcock, François Ozon, Hong Sang-soo, Woody Allen, Ingmar Bergman, Paul Thomas Anderson, Clouzout, mas tudo de uma forma arquitetada, articulada e sugestiva, nunca direta e explícita. Pois é, é a incorporação do tudo para ser lapidado no único.
Esse “tudo” vai nos dando dicas. As histórias são contadas de dia (relevantes ou não?), sempre com o pragmatismo, sem nenhum julgamento de porquês, ora com um toque mais melodramático (dependendo da impostação de quem conta). Sim, Almodóvar é um exímio contador de histórias. Sabe conduzir como ninguém as inflexões, pausas e timing para não perder a atenção do público. Para isso acontecer, “O Quarto ao Lado” traz duas atrizes de precisão interpretativa absoluta: Tilda Swinton e Julianne Moore. Dois lados. Uma na “ação”. A outra na função de “assistir”. Essa narrativa teatraliza mais e mais as conjecturas do intelecto, como razão, propósito e missão dessa vida, ainda que tenha “ficção numa reportagem de guerra”. E mais e mais, o longa cria seus simbolismos: lugares em conflitos, a “casa da morte”, “amantes compartilhados”, a existência que precisa ser sofrida até o final e nunca interrompida.
Almodóvar sabe que quando se tira a emoção, é o conteúdo que fica. E quando se verbaliza o querer a ações (os procedimentos médicos técnicos e receituários) mais polêmicas que fogem do padrão da sociedade religiosa, a tendência é deixar a morte mais técnica, mais fisiológica, mais de ideia de morte mesmo. Fica a permissão da angústia. Fica James Joyce em “Os Mortos”. Fica Virginia Woolf. Esse “morte acompanhada” é também um paradoxo, por transferir ao outro a passiva responsabilidade-culpa do “deixar ir”. Ao retirar o peso do sentido da morte, liberta-se do medo do depois. Do “se”. Planejar, manter a sanidade enquanto pode e viver os últimos momentos em um lugar mais confortável. Nada disso teria problema se nós não fossemos adestrados pela sociedade que vê pecado e covardia nesse ato. “Cada um tem um jeito de lutar”, diz-se.
“O Quarto ao Lado” mantém uma sensação anunciada de iminência do fim. O sexo aqui é com senso de urgência. Soa burocrático. O advogado está para proteger quem fica após o ato do ir. E inevitavelmente, esta que não vai apela aos mais básicos moralismos. Sim, é humano. É real. Até segurar “a pílula da morte” (e romantizá-la). É, nós somos imersos em conflitos internos de nossas próprias crenças. Será que são concretas e embasadas ou simplesmente “copiadas” dos outros? O que fica? Buster Keaton. William Faulkner e a certeza de que “o encantamento não existe”. “O Quarto ao Lado” é sútil, calmo, adulto e sóbrio ao nos colocar para esperar, mesmo quando discursa de forma mais inflamável a política de um mundo resignado, da extrema direita, das mudanças climáticas. “O Quarto ao Lado” é um estudo de caso de uma existência humana quando decide encerrar seu ciclo. Sem interferências e seguindo o fluxo de controle que cada um possui sobre sua vida. Que poder o outro tem sobre nosso corpo? “O Quarto ao Lado” é assim: artilharia pesada para separar a morte da idealização eterna da vida.