O Estranho
Nas matas, a resposta. Na pista, as memórias
Por Pedro Sales
Durante o Festival Olhar de Cinema 2023
Quais mistérios e histórias os lugares em que estamos carregam? A paisagem extremamente modificada pela urbanização apaga o passado. Antes de se transformar no maior aeroporto do país, o espaço que hoje é o Aeroporto Internacional de Guarulhos já foi mata, já foi natureza. Alê (Larissa Siqueira) esteve lá nos tempos distantes das turbinas e dos milhões de passageiros que anualmente passam. Foi moradora e sabe de memória onde cada casa ali ficava. No presente, existe a permanência da personagem neste espaço, agora como funcionária do aeroporto. Tensionando questões acerca de ancestralidade, tempo e o eterno embate entre tradicional e moderno (aqui, sobretudo em um aspecto geográfico), “O Estranho” não entrega respostas fáceis, provoca o espectador, convidando-o a diversas interpretações. O longa dirigido e roteirizado pela dupla Flora Dias e Juruna Mallon faz parte da mostra Competitiva Brasileira do Olhar de Cinema 2023 e também esteve na Berlinale.
Nas vastidões verdes da natureza, algumas mulheres estão sentadas, umas em cumes, outras em planícies. Na tela, várias marcações temporais parecem antecipar os conflitos que tangem a busca pela identidade e a transformação do espaço natural. Esse passado logo é contrastado pela rotina de Alê no aeroporto. Com panorâmicas que desviam a atenção do espectador de uma mala para outra, Dias e Mallon também consolidam essa segunda realidade do aeroporto: a dos funcionários. É por meio dessa espécie de personagens à margem que o filme desperta o interesse inicial. Essa funcionária que extravia malas para pegar objetos sem nenhum ou pouco valor financeiro, a outra, Antônia (Antônia Franco), que, de tão acostumada com o lugar, fecha os olhos para ouvir as turbinas e se sentir no mar ou mesmo o despretensioso ato de experimentar óculos na loja do aeroporto. Entretanto, tal temática fica em segundo plano com a busca pela herança cultural.
Os pequenos tesouros que Alê rouba, com fotos e pedras, agem em seu íntimo nutrindo o desejo de retornar ao seu passado, não apenas o seu enquanto indivíduo, mas o de sua linhagem. Os pertences de uma mulher que guardava lugares – mulher, pois a caligrafia denuncia o sexo – é o estopim para Alê se encontrar nesse espaço. O sentimento da protagonista de resgatar sua ancestralidade indígena, a qual foi negada por muito tempo, também é compartilhado por Silvia (Patricia Saravy), amiga e ficante de Alê, que, no caso, tem suas raízes familiares no Candomblé. Assim, “O Estranho” estabelece uma espécie de aculturação, uma vez que o resgate esbarra na modernidade. Essa dicotomia, por exemplo, está sempre bem pontuada no filme, tanto pelas situações narrativas quanto pela abordagem formal. Os planos gerais do aeroporto contrapõem a pista de decolagem com o verde ao redor. Por outro lado, quando os personagens se lançam na Mata Atlântica, querendo sentir a terra na pele, os planos detalhes destacam o cuidado em guardar pedras, folhas, flores. A natureza, portanto, continua viva ao redor e nas pessoas, mesmo que isso pareça tão inacreditável quanto a aparição de uma onça no meio da cidade.
Apesar do aparente foco narrativo em Alê, o roteiro de Mallon e Dias muitas vezes soa disperso, à medida em que outros personagens menores aparecem brevemente e prontamente saem e, além disso, há uma ruptura de gênero proposta. A intervenção documental que choca é um elemento estranho ao filme, mas que serve como justificativa da personagem. Afinal, quem pode dizer que o outro não é indígena simplesmente por não possuir a aparência considerada padrão às etnias? Esse coro de vozes é um protesto bastante direto e frontal para a presença indígena no país. Mesmo com essas eventuais mudanças no olhar, o longa se mantém fiel à personagem principal e seus sentimentos. Avançando na questão psicológica, os diretores propõem uma reconciliação com o passado cultural e também pessoal, por meio do registro no diário.
“O Estranho” é uma obra que propõe desde o início a reflexão sobre espaços e memórias. Ao assumir a essência da força e mistérios da natureza, Flora Dias e Juruna Mallon também articulam um comentário acerca da preservação do ambiente natural brasileiro e de sua cultura. A presença indígena, por exemplo, não é passado, é presente e também será futuro. Com alguns momentos silenciosos e com a sobreposição de imagens por fusão, a mata é construída como esse lugar místico. Embora o desconhecido muitas vezes provoque a desconfiança e até o medo, quando sentir o solo, as plantas e as pedras se torna uma vontade insaciável, é como se o estranho te convidasse a habitá-lo, e não tem chuva nem frio que impeça esse encontro com a ancestralidade.