O Contato
A inevitabilidade da transformação
Por Pedro Sales
Durante o Festival É Tudo Verdade 2023
Na Cabeça do Cachorro, região do extremo oeste de Amazonas, no Alto do Rio Negro, existem 23 etnias e 18 idiomas. Em “O Contato“, documentário dirigido por Vicente Ferraz – vencedor do prêmio de Melhor Filme no Festival de Gramado 2014 com “Estrada 47” – e participante da mostra competitiva do Festival É Tudo Verdade 2023, três etnias são colocadas em destaque: os Arapaso, os Hupda e os Yanomami. A questão central do longa é a análise e comparação entre as diferentes formas de contato com o homem branco entre essas comunidades. O tema ressoa também com questões humanitárias recentes, como a Crise Yanomami, em que foi registrada uma taxa de mortalidade de 10,7 óbitos para cada 100 mil habitantes, sobretudo devido à malária e à desnutrição.
A subjugação dos povos indígenas que ocupam a região era feita exclusivamente pelos brancos exploradores e expedicionistas. Os fantasmas do passado, contudo, permanecem vivos nas memórias dos mais antigos. A lembrança de Manduca Albuquerque, tirano, senhor de escravos e assassino, estremece os idosos e alerta os mais jovens. Hoje, por outro lado, existem ecos da maldade de Albuquerque em garimpeiros e madereiros. Antes de estabelecer os males trazidos pelos brancos, Ferraz apresenta uma efetiva introdução que diferencia e especifica cada uma das etnias. Assim, o espectador consegue entender quais os dilemas e anseios de cada um dos povos retratados. A mãe da etnia Arapaso vai até o município de São Gabriel da Cachoeira para tratar da filha com depressão. A família Hupda organiza uma expedição para que o bisneto conheça sua bisavó. Os Yanomami resgatam registros fotográficos e vídeos de um líder falecido há pouco tempo para manter viva sua memória. Em cada uma das comunidades, é perceptível que o efeito do contato com o homem branco é diferente. Em algumas, a cultura ocidental se embrenhou com maior facilidade, comprometendo, até mesmo, a tradição ancestral.
“O Contato” interpõe, muitas vezes, as noções de territorialidade e etnocentrismo. O longa é falado em línguas indígenas (tukano, yanomami e maku), apresentando, portanto, diferenças básicas entre as etnias. Alguns vocábulos, entretanto, são ditos em português, como “medo”, “internato” e “depressão”. A preservação cultural se apresenta como um desafio e uma missão para os povos indígenas. Os Arapaso já lidam com a extinção étnica há tempos. A língua original deles foi esquecida, hoje falam o Tukano. Nos Hupda, a avó reclama do neto que mal a entende, sugere que visitem a bisavó a fim de manter a cultura viva dentro do pequeno, o qual parece mais Baniwa (etnia do pai) que Hupda. “Acho que foi Deus quem trocou nossas línguas, por isso temos tantas línguas”, diz a avó acerca da Babel indígena. “Se Deus só fala em português, ele se esqueceu de nós”. Além da pluralidade linguística e os claros desafios em transmitir isso para as novas gerações, a cultura oral e religiosa também é passível de resistência. A Cobra Canoa em que os indígenas chegaram à Terra, saídos do Buraco da Transformação, dividem espaço com o cristianismo.
O documentário evidencia os diferentes graus de ligação entre as etnias e os brancos. Nesse aspecto, a religião é um ponto quase incontornável. Uma mulher usa um crucifixo, a outra frequenta a Igreja Católica e antes estudou em um internato de freiras. Os efeitos da catequização são claros, os indígenas foram convertidos e, para manter suas crenças originárias, realizam uma espécie de sincretismo religioso. É quase um deslocamento cultural. Ferraz o constrói metaforicamente, mas demonstra também o deslocamento físico. A mãe sai da comunidade para ir à cidade, tratar da depressão da filha. Ela cruza o rio e emerge em outra realidade. A outra jornada é de resgate ao passado, para uns o contato com a ancestral a relação bisavó-bisneto, para os outros uma chance de reviver aqueles que já se foram, por meio do aparato fotográfico-tecnológico.
“O Contato” desenvolve bem as questões multiétnicas muitas vezes negligenciadas por uma visão etnocêntrica de “todos são iguais”. Às vezes leva à questão: Uma comunidade é mais indígena que a outra por manter tradicionalismos enquanto outras “cederam” à dominação? A resposta é uma só: não. Ferraz, mesmo explorando diferentes níveis de intervenção do homem branco, constata que de alguma maneira todas aquelas etnias foram modificadas, seja pelas vestimentas, inserção tecnológica e conversão religiosa. Ele propõe, portanto, a inevitabilidade da transformação mediante o contato. A montagem alterna entre Hupda, Arapaso e Yanomami de forma natural, a fluidez das transições e dos fade-outs ajudam a sempre renovar o interesse do público nas idiossincrasia dos povos. Outro ponto técnico que engrandece o documentário é a excelente fotografia que contrasta o espaço natural, urbano e as eventuais interseccionalidades entre os dois. Ferraz consegue captar a beleza natural, principalmente nas cenas com o rio, esse palco de deslocamentos e de travessias de uma realidade para outra. As águas caudalosas parecem selvagens, mas depois os barcos a motor que a cortam no meio, e para sublinhar a proximidade usa-se muitos closes e planos por sobre o ombro.