O Clube dos Canibais: Um Segundo Olhar
Abastecidos pelo Ódio
Por Jorge Cruz
O primeiro gênero referenciado por “O Clube dos Canibais” é o pornográfico. A cena em que Gilda (Ana Luiza Rios) se insinua para o limpador de piscina, ainda durante os créditos, é composta por uma genérica trilha de filmes para adultos. Não é difícil perceber que o longa-metragem transitará pelo deboche em suas representações. Não há na obra espaços para atos preparatórios, a crueza da violência se impõe desde o início. Por isso, podemos concluir que o filme se insere na sociedade, como produto da mesma, já que não precisa nos convencer a partir de uma lógica paralela.
Esse é o sentimento mais poderoso que um filme de ficção pode ousar atingir: o de nos dar a certeza de que, por mais absurdo seja o que ali é mostrado, pode voltar a acontecer na vida real. Por isso “O Clube dos Canibais” se constitui de força narrativa. Atuando em duas frentes, na ultraviolência e na ironia escrachada, atinge seus intentos com louvor. Porém, a despeito de toda estética louvável, o longa-metragem sofre por não desnudar as pessoas ali representadas. O diretor e roteirista Guto Parente não demonstra uma decisão sobre a função alegórica de seu texto, eis que ousa a complexidade de estrutura mas se mostra em mais de uma oportunidade unidimensional na execução.
Se visto como um conto de terror, simplório na trama para apenas chocar, o filme pode ser comprado com mais empolgação. Essa indecisão de enquadramento canônico se dá porque “O Clube dos Canibais” tenta ser complexo nas questões, amplo no debate, mas incipiente nas representações e argumentos fornecidos. Sem contar que o retorno do protagonismo branco, da classe privilegiada (mesmo que a partir da vilania) já nos dá mais tempo de tela a pessoas que dominam o discurso. Mesmo que para criticá-las, não podemos fazer a partir de uma pobreza narrativa, mesmo que haja impacto visual.
A experiência de assisti-lo, para quem não se sensibiliza por muito sangue, é um bom exercício de cinefilia (até a pornográfica, como já mencionamos). Sua ambientação na residência e seu ritmo pautado nas bizarrices dos personagens, fazem a produção passear entre a filmografia de Roman Polanski e David Lynch – com a escatologia comum aos seus sucessores. Há clara referência à cena em que o Bill de Tom Cruise chega ao encontro secreto na mansão em “De Olhos Bem Fechados” (Stanley Kubrick, 1999). Como brincadeiras visuais, aliado aos momentos macabramente espirituosos, “O Clube dos Canibais” funciona bem. Seu realismo urbano, deixando os absurdos como ferramentas narrativas pontuais, nos faz lembrar um pouco o cinema de Terry Gilliam.
O faro dele não ser tão eficiente nessa representação, não deixa de criar uma sensação de que Guto Parente faz as vezes de um Jordan Peele reconstruído, jogando na cara da elite burguesa seus preconceitos – mudando apenas o foco novamente para o opressor. É louvável a produção cinematográfica de Guto, que já tem sete longas-metragens dirigidos nesta década, sendo fundamental que ele continue contando suas histórias. Aliás, é importante que ele não se paute por críticas a serem feitas a partir de uma decupagem de sua obra, já que a maturidade criativa em uma arte tão complexa quanto o cinema vem chegando para Parente de maneira avassaladora.
Essa produção consegue telegrafar para o público o que o cineasta pensa sobre o cinema e a sociedade onde está inserido, material bruto para que ele avance em sua carreira sem se preocupar com conclusões equivocadas de seus trabalhos futuros, algo que José Padilha achou que não deveria se preocupar quando ao nos entregar “Ônibus 174” (2002) e depois “Tropa de Elite” (2007). Esse ideal de crítica ao reacionarismo travestido de defesa da família e o uso dos gêneros cinematográficos para desnudar a casta privilegiada são bem claros – mas o filme peca por tentar não jogar tanto essa faceta na tela, o que nos deixa carente de signos ao final da projeção.
A vulgaridade cômica aliada a esse manancial de referências tem um forte apelo junto ao público, que terá em “O Clube dos Canibais” um produto cinematográfico de qualidade para absorver o que ele aborda em suas alegorias. Pequenas inserções, como personagens demonstrando o desprezo pelo país e mandando o segurança da casa “atirar primeiro e perguntar depois”, junto ao trabalho espetacular de trilha de Fernando Catatau tornam o leque das impressões possíveis um pouco mais didático.
A crítica ao cidadão de bem, que vê na classe trabalhadora e nos corpos negros um mero objeto de uso é bem defendida pelo elenco, que destila suas atitudes e teses fascistas a partir de falas equilibradas e ao mesmo tempo debochadas, sempre se colocando de maneira calma – como um cidadão de bem em paz com sua consciência. Dessa maneira “O Clube dos Canibais” pode se vangloriar de ser um dos destaques no bombardeio de obras que o cinema nacional lança em 2019, aliando sua qualidade de produção à urgência da mensagem – mesmo que outras camadas fiquem por vir em futuros trabalhos do talentoso Guto Parente.