O Bom Cinema
O bom cinema é subversivo
Por Paula Hong
Olhar de Cinema 2021
Entre um ótimo trabalho de montagem de arquivo e o didatismo, Eugênio Puppo traça os caminhos, motivações, ideias, ideais dos principais cineastas que compuseram o Cinema Marginal brasileiro. O grande êxito do documentário reside na perspicácia de costurar entrevistas contidas nesses arquivos para tecer diálogos entre Carlos Reichenbach e Rogério Sganzerla, porta-vozes do Cinema Marginal em “O Bom Cinema”, exibido no Festival Olhar de Cinema 2021. Os trechos de filmes a que assistimos acompanhados dos depoimentos elevam a potencialidade que essa combinação assegura.
O “pós-Cinema Novo” extrai do caldo cultural paulistano, localizado no período ditatorial brasileiro, as ebulições transgressoras decorrentes do grande desencanto com o cinema. Contemporâneo ao movimento Tropicália, iniciado na música e, mais tarde, respingando em outras formas de arte, o Cinema Marginal demonstra ainda maior descontentamento com a área. A busca por transgressão é uma resposta sintomática contra a ditadura militar: se o objetivo era esconder, planificar e adormecer qualquer forma genuína de expressão, o Cinema Marginal não somente recusa o Cinema Novo (sem descredibilizá-lo e apagar sua importância para o cinema brasileiro) ao passo que acrescenta camadas que confrontam o governo em voga.
Um dos poucos fatos mencionados sobre as origens do Cinema Marginal, a Escola de Cinema de São Luís, em São Paulo, tem uma boa cobertura no documentário. Essa parte de “O Bom Cinema” permite compreender as controvérsias positivas daquele recorte. O espírito transgressor é fruto de um curso sediado na Universidade Católica de São Paulo. A liberdade em montar o corpo docente daquela época é feita com base no retorno que os alunos dão ao que aprendem. Há, portanto, um senso crítico que permeia um grupo que reúne entusiastas por cinema.
O documentário também permite, através dos depoimentos nos arquivos, entender as dificuldades financeiras para realizações de filmes. Eles incorporam essas desvantagens monetárias em suas obras — tanto no discurso direto expresso pelos diálogos como pelo estilo — sem desqualificar a forma coerente com que trazem as inquietações e denúncias sociais do cotidiano urbano. O Cinema Marginal eleva e devolve, por intermédio do cinema, a radicalização que aquele momento da história brasileira pede, recusando um modelo de produção que adormece e aniquila a criatividade e, portanto, a existência humana. Àquela altura, eles já estavam cientes do poder de mudança que o cinema tem de aferir nas percepções críticas das pessoas.
Com isso, “O Bom Cinema”, ciente do que as entrevistas e as obras do Cinema Marginal carregam, se ancora num exercício bem executado de montagem onde as reflexões de Reichenbach e Sganzerla se complementam e que continuam ecoando até hoje: o que acontecerá com uma estrutura de sistema de realizações cinematográficas que não pode falhar e falir? o que acontecerá com o cinema pobre brasileiro? por onde andam realizadores que enfrentam limitações de recursos para realizações e, por extensão, de exibição?
Essa descentralização é expressiva nos materiais de arquivo, é fácil de extrai-la quando os expoentes do Cinema Marginal são tão diretos, sobretudo Reichenbach, mas talvez tenha faltado a Puppo um pouco mais de audácia no modo como trata esses materiais para trazer colocações novas ao temário abordado. Aqui está o demérito: embora bem construído, o filme não se arrisca perante aos moldes clássicos do gênero apesar da força que os materiais fornecem de contorno estrutural e formal. Há, contudo, enorme satisfação de assistir uma série de produções em boa qualidade, mesmo que somente trechos delas, quando muitas são de difícil acesso e, quando encontradas, estão em péssima resoluções — reflexo longevo das condições de realização da época.
Por fim, o Cinema Marginal é o bom cinema — adjetivo muito bem empregado pela carga irônica que contém. Puppo faz um recorte do cinema brasileiro que quem já conhece tem vontade de revisitar e quem não conhece, atiça curiosidade para conhecê-lo. O documentário relembra que há um tipo de cinema que dá vontade de fazer cinema, de criar outros tipos de cinema. É um mosaico que reascende, para muita gente, o descontentamento com a área cinematográfica, mas que ao mesmo tempo serve de combustível para mudanças. O diálogo entre o ontem e o hoje é um aspecto muito forte dentro do filme. Mesmo sem se colocar diretamente na obra, o diretor parece falar através de quem admira, construindo uma voz autoral por intermédio do retalho arquivístico que faz sobre Cinema Marginal.