Nona: Se Me Molham, Eu os Queimo
A estética do fogo no parquinho do Chile
Por Fabricio Duque
Festival de Roterdã 2019
A logo de abertura do Festival de Roterdã 2019 em “Nona: Se Me Molham, Eu os Queimo” já automaticamente reveste o filme com as características mais independentes do cinema, como a impressão de ser um estético exercício de linguagem, criado pela metáfora existencial de um conceito insight, quebrando tempo-espaço e permitindo que percepções aconteçam por sinapses estimuladas da memória em contato com a realidade, contemporaneidade essa que faz uma reconstituição de um passado quase ficcional com ares documentais de imagens caseiras. Sua diretora Camila José Donoso (de “Casa Roshell”) tem um propósito de crítica-político-social e o realiza pela intimidade de uma familiar história subjetiva. Nona é a avó de Camila.
Com co-produção brasileira (logo da Ancine e processo de finalização, com Karen Akerman na edição; Bernardo Uzeda no desenho de som, produção de Tati Leite, entre outros), “Nona: Se Me Molham, Eu os Queimo” é uma obra-submarino. Que se conduz pelo estímulo sensorial do micro ao macro. De um interno, capitaneado pelo “fogo” do meio em que se vive. A estrutura narrativa quer a sobra, o excesso, o instante estendido, a contemplação mais banal, a encenação com aura de improviso, tudo pela naturalização de uma captura orgânica. O longa-metragem nos leva, nos traz e nos coloca à deriva, precisando assim montar as peças de um quebra-cabeças, perdidas, soltas, descontínuas e sem ordem. Aqui, a estética é protagonismo. E a tradução da história (e de sua personagem principal de 66 anos, a atriz Josefina Ramírez), coadjuvantes.
Em “Nona: Se Me Molham, Eu os Queimo”, que integrou a Tiger Competition do Bright Future, ao lado de “No Coração do Mundo”, de Gabriel Martina e Maurílio Martins, a constante fragmentação-digressão, intercalada entre imagens de arquivo (reais da época), em elipses liberdade-poética, apenas pontua com inferências informativas sobre uma mulher intrigante, idiossincrática, “excêntrica”, “ambivalente”, “colorida”, enérgica, de atitude e aparentemente “dondoca” aos outros (mas uma “dona de casa” exemplar com suas faxinas), que se comporta às vezes como a “Dona Florinda esperando o Professor Girafales (referência ao programa “Chaves”), que cometeu um crime passional, e que foi obrigada a deixar Santiago, exilando-se (sem “represália” e à procura de “tranquilidade”) na cidade costeira de Pichilemu, numa casa que comprou na época do governo de Salvador Allende. E que fez parte da resistência anti-Pinochet, tornando-se uma especialista na produção de molotovs. O próprio filme “ensina” como fazer um no “tutorial” (à moda youtube e sua câmera estática de estúdio) de abertura.
Camila quer recontar e se reaproximar da história do Chile. O momento atual, em ficção, é atravessado pelas imagens de uma época que não soa real. O motivo desta sensação ser potencializada é pela forma. Uma performance no documentário e na encenação. Consegue-se assim, com sucesso, atender ao objetivo de confundir o que é fantasia e/ou fábula do real. Questionamos também que a verdade é uma mera perspectiva do olhar. Se a memória se auto transmuta em fugas em mentiras adulteradas, e se a câmera já faz que se busque uma versão “melhorada” de si mesmo, então “Nona: Se Me Molham, Eu os Queimo” é uma obra que transcende credibilidades.
“Nona: Se Me Molham, Eu os Queimo”, um registro pessoal-anárquico de uma pessoa que figurou como uma das que contribuíram para mudar um sistema ditatorial, ainda que em aberto possa ter tirado “proveito próprio” com as ondas de incêndios – sua casa não foi afetada), busca convidar o público a participar de um cotidiano e sua história, que passa por incêndios “criminosos”, por vinganças pelo fogo, por cirurgia contra catarata, pela calmaria do hoje versus a turbulência política do ontem e pelo fato versus ficção (com destaque ao personagem Pedro, interpretado pelo ator Eduardo Moscovis, uma figura misteriosa que ronda Nona). Nona “representa” de maneira multifacetada, “uma geração mais velha e um país complexo, ainda marcado pela ditadura de Pinochet”.
“Eu queria que o personagem de Nona tivesse profundidade. Eu queria que o espectador descobrisse Nona como eu a conhecia; uma avó, uma dona de casa extrovertida que ocasionalmente mentia, uma mulher volúvel, e tudo aquilo que estava longe da femme fatale piromaníaca que mais tarde descobri. Eu queria que o espectador pudesse viver na intimidade de Nona, sem julgamento: pois a beleza de Nona também reside na complexidade, na ambivalência de seu caráter”, finaliza a diretora Camila José Donoso.