Noite de Reis
A Noite da Lua Vermelha
Por João Lanari Bo
Festival do Rio no Telecine
“Noite de Reis”, realizado por Philippe Lacôte em 2020, investe numa metáfora de dar inveja aos filósofos que fizeram história conjeturando sobre nossa existência: uma prisão, de portas fechadas, controlada pelos presos e transfigurada por um imaginário mítico. O ser (a prisão) e o nada (o mundo exterior): estamos em um espaço sartreano, teatral e verborrágico. Mais, ainda: estamos em um espaço que parece idealizado por ninguém outro que Jean Genet, o Saint Genet de Sartre. O Santo disse certa vez: “Repudiando as virtudes de seu mundo, os criminosos concordam irremediavelmente em organizar um universo proibido. Eles concordam em viver nele. O ar ali é nauseante: eles podem respirar.” La Maca – acrônimo de Maison d’arrêt et de correction d’Abidjan – é a penitenciária mais conhecida da Costa do Marfim, cheia de presos políticos e presos comuns, superlotada – em janeiro de 2020, segundo a Anistia Internacional, mantinha 7.782 detentos, muitos deles aguardando julgamento, muito além de sua capacidade para 1.500 pessoas. O filme de Lacôte se passa em uma noite de lua vermelha, no espaço dramático prisional de La Maca, recriado a partir das visitas que o próprio realizador fazia quando criança uma vez por semana para encontrar a mãe, encarcerada por razões políticas. Segundo ele:
Como não há salas de visitas em Maca, esperava entre os presos que circulavam livremente em meio ao grupo de visitantes. Era um mundo que eu adorava observar, mesmo que não fosse capaz de decodificar tudo. Tinha a impressão de estar na corte de algum reino arcaico com todos os seus príncipes e lacaios …
O nome do recém-chegado, o protagonista do filme, não é Roman – este é o nome atribuído a ele por Dangôro, chamado de Barbe Noir, o mestre supremo que governa La Maca. Um guarda descreve o lugar como a “única prisão no mundo administrada por um prisioneiro”, mas quem manda mesmo em “Noite de Reis” é o poder da mitologia. Sempre que o líder adoece, ele deve se matar: para distrair facções rivais que competem para derrubá-lo, Barbe Noir, que está doente, decide; Roman deve contar uma história com a duração da lua vermelha. Se não o fizer, morre também. Roman se supera e improvisa, viajamos no tempo em que a realeza ainda reinava na Costa do Marfim. As palavras do narrador se materializam em (efêmeras) imagens, cenas dramatizadas, rainhas afro, mas também imagens que remetem à guerra civil que abalou o país no início dos anos 2000. Um certo gângster chamado Zama King é o herói dessa jornada.
“Qualquer pessoa que não experimentou o êxtase da traição não sabe absolutamente nada sobre o êxtase”, garante Jean Genet. Todos traem a todos, em quem confiar? Antes de se afogar na cacimba da prisão, Barbe Noir vaticina: “Meu espírito se tornará uma corça, e vou vagar pela floresta ao redor da prisão”. Roman, esperto, aprende rápido a arte de narrar a jornada do herói. A plateia se regozija, e responde com performances corporais. No meio da massa, detentos vestem camisetas New York, futebol americano, como se esperaria em uma penitenciária do terceiro-mundo e, em uma delas, está escrito: Brasil. Em plena La Maca, alguém resolve homenagear Zé Pequeno, de “Cidade de Deus”. E Roman continua sua história: Soni, o pai de Zama, foge da guerra e se esconde na zona sem lei da periferia da capital, Abidjan. Nesse momento, a fábula fílmica é atravessada por um dado concreto da realidade: a TV mostra o ex-presidente Laurent Gbagbo, o político que provocou não uma, mas duas guerras civis na Costa do Marfim, em 2002 e 2011; nesta última, Gbagbo recusou-se a admitir a derrota depois de perder as eleições de 2010. No conflito que se seguiu, pelo menos 3 mil pessoas morreram. Depois de sete anos preso, acusado de fomentar a discórdia, entre outras denúncias, o ex-Presidente acabou inocentado pelo Tribunal Penal Internacional de Haia, em 2019: retornou ao país natal em 17 de junho de 2021.
O princípio da realidade funciona como anteparo da fantasia na “Noite de Reis”: Zama King toma partido na cena política. Philippe Lacôte sabe do que está falando, em 2008 dirigiu o documentário “Crônicas da Guerra na Costa do Marfim”. Nesse drama que parece não ter fim, uma no end story, Genet tem a última palavra: “É uma imagem verdadeira, nascida de um falso espetáculo”.