No Submundo de Moscou
O submundo do poder
Por João Lanari Bo
As cidades são um corpo vivo, dizem os urbanistas: mais ainda, são organismos com corpo-e-alma. Dispõem, portanto, de consciente e inconsciente, mundo e submundo. “No Submundo de Moscou”, filme dirigido pelo competente diretor russo Karen Shakhnazarov, propõe-se a narrar um mistério policial fazendo a ponte entre mundo e submundo da cidade de Moscou. A história é ambientada em 1902, e traz como detetives duas figuras de proa da cultura daquele imenso país – o ator e diretor Konstantin Stanislavski, um dos grandes nomes do teatro mundial, e o jornalista e escritor Vladimir Gilyarovsky, menos conhecido fora de seu país natal, cronista do “submundo” moscovita das últimas décadas da Rússia czarista, especialmente na região conhecida como Khitrovka, coração do crime em Moscou antes da revolução bolchevique.
Para arrematar, o roteiro inspirou-se em obra de Conan Doyle, o “Signo dos Quatro” – Sherlock Holmes é procurado por uma jovem, Mary Morstan, para esclarecer um crime cometido muito tempo antes, tesouro roubado de um rajá por quatro ladrões. Entre assassinatos e revelações, acontece uma perseguição emocionante de barcos no Rio Tâmisa. Em “No Submundo de Moscou” também se destaca uma perseguição aquática, no tom farsesco que caracteriza o filme: e também pontifica, embora invisível, um sikh indiano, misterioso colecionador de antiguidades que foi parar, também misteriosamente, em Khitrovka. Afinal, porque ele escolheu a fria e exótica Moscou como seu novo local de residência? Seu principal tesouro é um colar de valor inestimável, com enormes esmeraldas, e várias pessoas o estão caçando ao mesmo tempo. Stanislavski e Gilyarovsky entram na história quando, um belo dia, resolvem visitar o sikh e o encontram morto: alguém atirou nele um dardo envenenado.
É um filme de entretenimento. Há muito tempo eu queria fazer um filme como esse, que não fosse carregado de problemas subjacentes à busca do sentido da vida, mas sim uma história detetivesca fascinante, em parte um thriller.
As palavras de Shakhnazarov contextualizam a produção. Tudo começa com um ensaio da peça “Ralé”, com Stanislavski insatisfeito com a composição de seu personagem. Para adentrar no universo dos despossuídos, faz contato com Gilyarovsky a fim de conhecer Khitrovka e sua fauna humana (até aqui, os fatos são verdadeiros). No início, o ator é um “dandy” imerso num espaço sórdido, apesar da cenografia e figurinos, habilmente construídos, sugerirem um cenário quase hollywoodiano, ou ainda, um cenário ao melhor estilo da Mosfilm, a notável produtora que durante décadas brilhou na União Soviética (e que ainda sobrevive, embora sem o poder que ostentava). Logo nossos investigadores descobrem que os dardos são disparados por um homem pequeno, descalço e de aparência assustadora, servindo um enigmático inglês que decidiu obter o colar a qualquer custo. Não falta uma bela jovem para ilustrar os acontecimentos, ladra e cantora, descendente de nobres falidos, que cresceu e vive em Khitrovka.
O parceiro de Stanislavski, Vladimir Gilyarovsky, é um caso à parte: além de cronista policial, deixou descrições reveladoras de ícones da literatura russa, como Lev Tolstói, Maxim Gorky, Alexander Blok e o amigo Anton Chekhov, com quem iniciou a carreira em um pequeno jornal (Chekhov, um dos maiores dramaturgos da literatura universal, também aparece no filme e era próximo de Stanislavski). Tio Gilyai, como era conhecido Gilyarovsky, tinha um afeto especial por bandidos, sem-teto, mendigos, bêbados e ladrões, todos evitados pela maioria dos moscovitas.
Entretanto, Mikhail Porechenkov, o ator que encarna o personagem, tem outro perfil: em 2014, visitou territórios recém-capturados pelas forças apoiadas pela Rússia no leste da Ucrânia e foi filmado disparando uma metralhadora – ele é defensor da invasão da Ucrânia pela Rússia, assim como o diretor Karen Shakhnazarov.
“No Submundo de Moscou” é um filme escapista, na definição do crítico Inácio Araújo. Um folguedo para esquecer a guerra que se avizinha, e parece não arrefecer. Segundo a KinoKultura, revista online de críticas e notícias sobre o cinema russo, em tempos de guerra com a Ucrânia, filmes locais e estrangeiros são exibidos regularmente no país continental, embora com limitações: películas russas necessitam de certificado de distribuição para circular, na prática uma forma de censura, atingindo produções como as de temática LGBT e aquelas com aspectos políticos julgados inconvenientes. Alguns filmes estrangeiros também podem ser objeto de “recomendações” específicas que impedem a circulação. Não obstante, muitos são pirateados e passam nas salas de cinema. No primeiro trimestre de 2023, conforme a revista, esse lote “paralelo” abocanhou cerca de 20 % do mercado.