Neirud
O Maior Show da Terra
Por Pedro Sales
Durante o Festival Olhar de Cinema 2023
Antes da realizadora Fernanda Faya nascer, tornando-se a neta primogênita da avó Nely, a família naturalmente já estava formada, com sua mãe, seu pai Edgard e sua tia Neirud. De quem essa tia é irmã ou de que quem ela é filha, isso a diretora não sabe. Mas, carinhosamente, ela sempre foi tia. Companheira da avó no circo e heroína da pequena Fernanda, a tia Neirud era também a “Mulher Gorila” nas performances de luta-livre, um “monstro sagrado do ring”, como pontua uma de suas ex-colegas circenses. E essas poucas informações eram tudo o que sabiam de Neirud. Logo após sua morte, a família foi até a casa, tentando achar fotos, documentos e registros. Entretanto, nada disso estava lá, é como se o passado dela nunca tivesse existido, ou melhor, nunca tivesse sido registrado. A produção “Neirud”, que faz parte da mostra Competitiva Brasileira do 12º Festival Olhar de Cinema, busca responder a essas questões no ímpeto de traçar a genealogia da tia por meio do resgate documental.
A história familiar de Fernanda Faya sempre foi bem esclarecida e preservada. A memória se encontra não apenas nos relatos orais, mas também nas fotos guardadas com extremo zelo e cuidado. Dessa forma, a diretora demonstra que a as raízes da família exercem um papel central em sua vida e do seu núcleo familiar. “Somos uma família de circo”, diz o pai à filha. Esse caráter performático, ligado à prática circense, vem da origem cigana e nômade da família. O circo, portanto, se transformou em um disfarce, uma forma de fugir dos preconceitos, perseguições e eventuais crimes de ódio. Os homens da família, no entanto, foram vítimas de um massacre, o que obrigou as mulheres e crianças a tocarem o circo de feras, uma independência feminina imposta pela sangrenta intolerância. Nesse contexto de circo, a avó Nely conhece Neirud e ela se integra à família, mas como e quando isso aconteceu?
“Neirud” estrutura-se nesse tom investigativo pessoal e familiar. A história da avó e de seus antepassados já era consolidada, mas supreendentemente, excetuando as gravações caseiras, nada da tia estava nos arquivos cuidadosamente armazenados pelo pai. Como uma pessoa tão próxima a ela pode parecer tão invisível no que se trata de registros? O principal desafio da realizadora Fernanda Faya, portanto, é desvelar esse encontro e origem. Dessa forma, o documentário explora discursivamente a falta e a escassez dos documentos, a própria apuração e busca se torna, então, parte determinante do filme. Assim, a obra consegue estabelecer um quase-mistério que é compactuado pelo espectador que, mesmo em 1h11, sente-se curioso e compenetrado em relação às perguntas pessoais de Faya.
Essas perguntas poderiam ter sido respondidas pela própria Neirud, e foi isso que a realizadora tentou, o relato da infância, antes inconfessa, revelou traços e resquícios da escravidão no país. Com oito anos, ela fugiu da casa onde morava, aos 12 ingressou no circo. Mas quando integrou a trupe de luta livre de Nely? Isso ainda não estava respondido e nem pôde ser, pois pouco depois da entrevista Neirud faleceu. A partir daí, surge a necessidade da busca pela história. O documentário combina as conversas de pai e filha, as conversas de Fernanda com Rita Monterrei, uma antiga participante do circo e, claro, muitos registros, como fotos e gravações antigas. Entre a busca no presente e as imagens de arquivo do passado, “Neirud” sintetiza as contradições e lacunas na história que nunca lhe chegou aos ouvidos e que a realizadora teve que descobrir por conta própria. Se não há registro, reproduz-se a memória em tela – o infrutífero encontro com a Mulher Gorila na infância e as memórias mais recentes do Del Rey com o teto abarrotado de bolas.
“Neirud” é um documentário com viés extremamente pessoal, porém que consegue transpor a barreira do egóico. Tal fato acontece por vários motivos. Em primeiro lugar, o contexto circense brasileiro e, sobretudo, da luta livre feminina consegue por si só sustentar o interesse do espectador na história, uma vez que essa parece ser uma realidade cada vez mais apagada, apenas presente em relatos orais quase lendários. Da mesma forma, a condução dramática de Faya consegue construir um discurso que leva o espectador – e ela mesma – da impotência à realização, à medida em que as descobertas surgem. Aliado a isso, o trabalho de pesquisa e o empenho dedicado a descobrir a própria história é algo que dialoga com boa parte do público, que pensa nas suas próprias lacunas e nas inúmeras histórias familiares que lhe passaram despercebidas e que talvez nunca possam ser resgatadas. Fernanda Faya, por outro lado, conseguiu. Descobriu as diferenças entre dupla e par e eternizou a memória do que antes nunca foi visto, por meio do cinema.