Um Filme para Todas as Épocas
Por Jorge Cruz
Nada melhor para um cinéfilo do que rever seus filmes favoritos. Até para que eles deixem de sê-los ou que os motivos para que continuem sendo se modifiquem. “Na Natureza Selvagem” está mais para a segunda situação passados treze anos de seu lançamento. Há momentos em que o crítico coloca para fora uma autoindulgência juvenil, como que procurando nos leitores aquele grau de intimidade da mesa de bar. Quando o Vertentes do Cinema deu o poder de escolha de apenas uma obra cinematográfica dentre as centenas de milhares produzidas a partir de 1895 para criticá-la no especial de dez anos do portal, essa produção dirigida por Sean Penn e estrelada por Emile Hirsch talvez fosse a única opção. Seria a oportunidade de um diálogo entre duas faces do mesmo crítico: aquele que ensaiava uma vida dedicada ao cinema em 2006 e o outro que falhou miseravelmente em seu ensejo e não vê qualquer mal nisso em 2019.
O longa-metragem, baseado no livro de Jon Krakauer e roteiro adaptado pelo próprio Penn, conta a experiência de Alexander Supertramp (alter ego de Christopher McCandless) ao redor dos Estados Unidos. Concluindo que sua vida é uma farsa, ele decide andarilhar de Atlanta (onde acabava de se formar na Emory University) até o Alasca – onde, sem lenço e sem documento viveria a plenitude do contato com a natureza. A trágica biografia de Supertramp leva centenas de pessoas todos os anos a refazer seus passos nos Estados Unidos, uma espécie de culto ao minimalismo e ao naturalismo bem conveniente aos horrores que a pós-modernidade nos tem reservado. Muitos não sobrevivem a essa jornada e viram notícia, a última em julho deste ano.
Apaixonado por essa narrativa, Sean Penn aguardou por mais de uma década a autorização da família McCandless para que a biografia de Christopher pudesse ser levada às telonas. Tanto que na ideia original do diretor, Chris seria interpretado por Leonardo diCaprio, enquanto Ron Franz seria vivido por Marlon Brando. Quando conseguiu finalmente o aceite, Leo estava muito velho para o papel e Brando muito doente para trabalhar. Melhor para Hal Holbrook, que com uma carreira de mais de cem trabalhos, obteve sua única indicação ao Oscar interpretando Ron. Já o protagonista caiu como uma luva para Emile Hirsch, no papel de sua vida. O ator perdeu mais de dez quilos para compor o personagem e dispensou dublê em todas as cenas e entrega um dos grandes trabalhos do cinema nas últimas décadas.
A partir do momento em que a família autorizou Penn a produzir “Na Natureza Selvagem”, uma conexão foi criada. Tanto que Hirsch passa todo o filme portando um relógio de pulso que, de fato, era do verdadeiro Chris. Foi dado a ele pelos parentes para que fosse usado. A reverência com a qual foi tratada o biografado também merece destaque. Todas as cenas do longa-metragem foram filmadas nos lugares verdadeiros por onde ele passou. A exceção foi o famoso ônibus, recriado em outro local e inserido na montagem, por respeito ao momento vivido por ele. Mesmo assim, a equipe viajou quatro vezes ao Alasca para construir todas as cenas com o mais alto grau de fidelidade.
Talvez a grande beleza de “Na Natureza Selvagem” é usar o deslumbramento dos lugares que retrata a seu favor. A edição de Jay Cassidy, também indicado ao Oscar pela primeira vez naquele ano, faz uma sobreposição de grandes frases de efeito, lições ressoadas por Supertramp e belas imagens do grande personagem do filme: a natureza. Fundamental para o casamento entre textual e visual é a trilha sonora composta por Eddie Vedder, que aceitou convite de Sean Penn antes mesmo de saber qualquer coisa sobre o projeto. A experiência de assistir “Na Natureza Selvagem”, já com certo distanciamento histórico, é um pouco ter a certeza de que quatro profissionais (Cassidy, Hirsch, Penn e Vedder) viviam ali o auge de suas carreiras. Trabalhos irretocáveis de edição, atuação, direção e trilha.
Todavia, revistar uma obra com tanto impacto em sua vida é, também, revisitar sua própria biografia. Em 2008, quando da maratona de lançamentos indicados ao Oscar, quem assistiu aquele filme era um jovem de vinte e poucos anos no último ano da faculdade. Para que essa produção se consolidasse como uma pedra fundamental na cinefilia de quem vos fala, imperioso era um cenário de condições ideais de temperatura e pressão. Para quem ali existia, Alexander Supertramp era mais do que um protagonista. Era um modelo. Um estudo de personagem quase que moldado nos próprios anseios daquele espectador, que se identificava não só por conta da idade, do momento de vida, de aspectos familiares e de classe. É a magia do cinema, que usa a vulnerabilidade e inocência de quem vê como forma de convencê-lo de sua força sobrenatural. Sem pudor nenhum podemos concluir de que filmes como esse transformaram o mero espectador em um devoto da Sétima Arte.
Passados treze anos, o crítico que ali revisitava uma de suas obras favoritas se assemelhava mais com um irmão mais velho de Chris. Sendo assim, chamou bastante a atenção como, ainda no primeiro ato, o protagonista se autodefine como um “extremista”. Pois é isso que aquele jovem é: alguém que quer provar que um ponto está errado se colocando no lado diametralmente oposto daquela gangorra – mesmo sabendo que o peso da vida real poderá catapultar sua existência.
A estrutura do filme é formatada para que, a cada capítulo, uma nova troca de experiências entre Chris e os personagens que transitam por “Na Natureza Selvagem” ocorra. Por exemplo, o primeiro deles, Nascimento, nos apresenta Jan (Jena Malone) e Rainey (Brian H. Dierker), um casal de hippies que dão carona na parte inicial da jornada do biografado. A estrutura das relações entre o trio se assemelha a de pais e filho, como se aqueles suprissem a lacuna que faltou na infância e adolescência deste. A motivação pelo rompimento com o sistema do jovem se baseia nessa relação mal resolvida com a família. Uma rebeldia que faz todo o sentido para o espectador mais jovem, que entende ser esse uma espécie de combustível da vida. Já para os de idade mais avançada se mostra apenas como mais uma das crises a serem enfrentadas.
É com pesar que todo o invólucro filosófico de Alexander Supertramp, que outrora serviam como verdadeiros mantras, tenham passado por uma relativização ao rever “Na Natureza Selvagem”. Isso deu mais força a alguns aspectos do filme que passaram despercebidos em outras oportunidades. Um exemplo é como todos os personagens que interagem com o protagonista parecem sempre questionar suas atitudes. A grande maioria com as melhores intenções e movidos pelo apreço que tem pelo garoto. Porém, os ouvidos moucos de Chris insistem em tirar qualquer chance dele ser razoável.
Ver alguns animais sofrendo ou sendo dilacerados hoje agridem mais a vista, mas no contexto trabalhado por Sean Penn, faz certo sentido. Aliás, a direção dele parece ainda melhor em um momento onde o cinema abusa da computação gráfica ou do famigerado uso de drones. As escolhas de enquadramentos em “Na Natureza Selvagem” se revelam tão acertadas que podemos considerar o filme um jovem clássico.
Por isso, tecnicamente não há nada que tenha desabonado essa produção com o passar do tempo. Ela segue como um modelo de cinema que alia todas as possibilidades que a produção norte-americana permite com um transbordamento de criatividade e qualidade no trabalho de profissionais extremamente talentosos. As canções de Eddie Vedder, por exemplo, mereciam um longo texto reservada a elas, tão poderosas que elas são.
Sentimentalmente, “Na Natureza Selvagem” talvez tenha envelhecido – ou, melhor, transmutado. Não como um alimento que estragou, mas que teve seu sabor alterado pela ação do tempo. Talvez faça parte do deslumbramento comum aos jovens se vincularem a filmes como esse a ponto de quererem ser Alexander Supertramp. Porém, em uma idade mais próxima daquela em que Jean-Paul Sarte escreveu “A Idade da Razão” do que aquela onde Chris ganhou o mundo rumo ao Alasca, nos tornamos prudentes o suficiente para optar pelo equilíbrio no comportamento, mesmo que o conhecimento nos façam mais extremistas em nossas convicções.
1 Comentário para "Na Natureza Selvagem"
Belo texto. ‘Na Natureza Selvagem’ marcou uma geração muito específica de jovens (da qual eu fazia parte) que compreendiam e buscavam a beleza da vida “ao natural”, distante dos consumismos que hoje são parte intrínseca da vida. Digo isso porque sei que os jovens de hoje, que têm a idade que eu tinha na época do filme, desconhecem a história do Supertramp, o que sempre me deixa surpreso. De todo modo esse é um filme já clássico. Como você falou, todos os que trabalharam nele (incluindo Eric Gautier, o diretor de fotografia) estavam no seu auge, então o resultado não poderia ser menos que deslumbrante. Guardo o filme com carinho na memória (e no HD externo…).