Morfina
Cold turkey e Revolução
Por João Lanari Bo
Mubi
“Morfina”, realizado em 2008 por Aleksei Balabanov, foi considerado inadequado para espectadores com menos de 21 anos, assim como para os “mentalmente vulneráveis”, conforme aviso na capa do DVD lançado na Rússia. Ambientado num vilarejo isolado (e gelado) no imenso território russo, em pleno 1917 – ano não de uma, mas duas revoluções, a burguesa em fevereiro, e a bolchevique em outubro – o filme acompanha com esmero fisiológico a decadência moral e física do Dr. Poliakov, jovem médico, ansioso e inseguro, enviado para aquelas paragens como médico residente. Recebido pelo paramédico assistente e duas enfermeiras, faz um rápido tour pelo pequeno hospital e sua moradia, numa casa lateral. Os interiores, escurecidos com design de luz estilizado para imitar iluminação de lampião e velas, criam uma atmosfera absorvente, como se fossem telas a óleo: do lado de fora, o contraste com a luz monótona da neve do inverno, carregada de um romantismo pictórico, vai dar o tom de quase todo o filme, até o momento que o doutor finalmente procura a rehab. Sim, porque Poliakov se deixa arrastar por uma irresistível tentação, torna-se um junkie viciado em morfina – na primeira vez foi para atenuar uma alergia, decorrente de contato boca-a-boca com paciente que morria: na sequência, foi uma espiral para o inferno.
Dependência ou vício? A dependência em morfina é quando o indivíduo manifesta sintomas como agitação, irritação, ansiedade, vômito e diarreia durante poucos dias depois que se retira a medicação. Já o vício é crônico e nele há vontade muito grande de usar o analgésico mesmo já se estando dependente ou podendo voltar à dependência. Poliakov atravessou todos esses estágios: sua performance corporal, alternando entre o trêmulo e o estável, contagia a performance dos demais corpos. Mesmo sua observação desses corpos, as interações entre os personagens, são determinantes para localizar o ponto de vista do narrador que “Morfina” constrói. Ele olha para seus interlocutores em estado de ansiedade latente, ou de calmaria tóxica – sua acurácia de observação se distancia e se aproxima, na medida em que fica drogado. Podem ser corpos mutilados, doentes ou erotizados: cenas de sexo são filmadas com o mesmo nível de distanciamento clínico. A sucessão desses encontros corporais do médico e seus pacientes – parto, amputação, traqueotomia, queimaduras em primeiro grau, sexo, felattio – balança a fronteira entre prazer e dor, até o limite em que os corpos se comportam como corpos puros, sem subjetividade, sem interioridade psicológica.
“Morfina” é também o filme dos três “Bs” – Balabanov na direção, Bodrov Jr no roteiro e Bulgakov no livro original. Escrito entre 1917 e 18, Notas de um jovem doutor é uma coletânea de histórias pessoais do grande Mikahil Bulgakov, médico e à época também viciado em morfina, publicada entre 1925 e 26 – e roteirizadas por Sergei Bodrov Jr, ator-fetiche de Balabanov, morto tragicamente numa avalanche de gelo e lama, com 30 anos. Organizada em vinhetas, a narrativa do filme funciona como um diário, extraindo situações da coletânea de Bulgakov e do conto “Morfina”, publicado em separado. De onde vem essa Rússia camponesa, rural, pobre, marginalizada, analfabeta, quase medieval – que aflige o médico-herói? Ele se angustia com a nobreza local: injeta mais uma dose e faz sexo com a viúva ninfomaníaca. Foge em meio à nevasca e é atacado por lobos. Em pequenos flashes, chegam notícias da capital, da revolução que se aproxima. É uma escuridão que angustia o doutor: ele só pensa na próxima picada, nas gramas de morfina cuidadosamente guardadas pela enfermeira, logo transmutada em cúmplice e amante. Quem se aflige agora é o espectador, exposto a essa deriva diabólica, um cold turkey que se avizinha na vertigem do abismo nietzschiano – abismo que insiste em olhar para o pobre Doutor Poliakov.
É notório que Mikahil Bulgakov tinha simpatias pelos opositores dos bolcheviques, e sabe-se lá como sobreviveu até 1940, na literatura e no teatro – uma das razões foi a proteção que Stalin, sabe-se lá porquê, resolveu conceder ao escritor. Seu último livro, que morreu sem ver publicado, foi o fabuloso O Mestre e a Margarida, em que a Moscou de 1929 é visitada pelo Diabo, que seria ninguém outro senão … o próprio Stalin. Acredita-se que Marianne Faithfull deu o livro a Mick Jagger, que se sentiu inspirado para compor Sympathy for the Devil. Em Sister Morphine, Poliakov fala pela voz de Mick:
Here I lie in my hospital bed
Tell me, sister Morphine, when are you coming round again?
Oh, I don’t think I can wait that long
Oh, you see that I’m not that strong
Poliakov, enfim, resolveu se tratar e deu de cara com a Revolução Bolchevique. A reabilitação clínica, metáfora da assimilação dos valores revolucionários da nova república vermelha e socialista, parece não ter funcionado. Irmã Morfina, onde te encontro?
Ah, come on, Sister Morphine, you better make up my bed
‘Cause you know and I know in the morning I’ll be dead
Yeah, and you can sit around, yeah and you can watch all the
Clean white sheets stained red.