Mirante
Sinfonia urbana contemporânea
Por Pedro Sales
Festival Ecrã 2019
Por volta dos anos 20, uma nova “vanguarda” surgiu nos cinemas: as sinfonias urbanas. O mais lembrado filme deste gênero é “Berlim: Sinfonia da Metrópole” (1927), de Walter Ruttman. Ao lado da capital alemã, outra grande obra do período é o clássico “O Homem com uma Câmera” (1929), de Dziga Vertov. Esses e outros filmes-sinfonias carregavam uma construção poética. A câmera registrava cidades, movimentos e cotidiano, enquanto uma trilha de música erudita acompanhava. Em “Mirante“, documentário que esteve no Festival Ecrã 2019, há a retomada desse gênero quase cem anos após o auge. O diretor Rodrigo John realiza, dessa forma, uma sinfonia urbana contemporânea. Do alto do edifício Corcovado, localizado em Porto Alegre, observa-se a mudança física e política do espaço urbano no intervalo de 2007 a 2018.
Quem nunca tentou ver o que acontecia na janela do vizinho? Esse tipo de curiosidade é completamente natural, todo mundo algum dia já teve. No tédio e com a perna engessada, talvez seja o único lazer, como em “Janela Indiscreta” (1954), de Alfred Hitchcock. No filme de Rodrigo John, por outro lado, a curiosidade em ver os arredores e o que acontece na janela dos outros prédios possui um tom de observação documental. Um homem ensaia, outro assiste à televisão. Uma mulher fuma furtivamente na janela, homens trabalham nos prédios, e um casal está deitado na cama. Juntas, cada uma dessas pessoas forma um só corpo, como se fossem partes do prédio. Algumas, no entanto, já não estão mais lá quando o longa se aproxima dos anos finais de gravação. Nem os apartamentos escapam, uns são reformados, outros vendidos. O tempo muda tudo.
Na cena inicial, o dia se encerra, vem o crepúsculo e depois a noite, tudo em poucos segundos. De certa forma, é bastante simbólico que “Mirante” se inicie com um time lapse. Inegavelmente, o personagem principal do longa é Porto Alegre, e o secundário, por assim dizer, é o Tempo. É como se o destino de um dependesse do outro. Rodrigo John em um período de 11 anos conseguiu registrar as principais transformações na capital gaúcha. Mas, para além da mudança física, o cineasta explora a mudança ideológica no país. As televisões barulhentas nos prédios saem da telenovela mexicana “Maria do Bairro” para os jornais. Saem de protestos contra corrupção nas jornadas de junho de 2013, para gritos de comemoração e “panelaços” na votação do impeachment de Dilma Rousseff. A transformação não se materializa apenas nas telas de TV, mas também nas ruas da cidade. A câmera filma por entre frestas de prédios os protestantes e membros da Polícia Montada.
Por mais que o documentário explore a questão política do país e a gênese do discurso pró-direita, a obra, ainda assim, não abandona Porto Alegre. Pelo contrário, por meio da associação com a realidade política brasileira, entende-se como a cidade se modifica fisicamente e socialmente. Por exemplo, adesivos surgem nas paredes com os dizeres “Fora Temer”, em outra cena, de veia mais social, dois homens são detidos pela polícia, o que gera comoção popular e aplausos após a contenção dos possíveis bandidos. Não são só os prédios que mudam com o tempo, as pessoas também. Será que esses que aplaudem hoje são os mesmos que tomaram as ruas em protesto anos atrás?
Para construir essa investigação na cidade, Rodrigo John lança mão da linguagem experimental em “Mirante“, assim como os cineastas das primeiras sinfonias urbanas. Em alguns momentos, inclusive, o documentário pende à videoarte, sobretudo quando usa sobreposições, as quais fundem as telas de TV e a paisagem de Porto Alegre durante a noite. Nesse sentido, a montagem do longa, que é assinada pelo diretor, propõe dinamismo, foge do mero registro documental e explora sensorialmente a polissemia da imagem e do som. A obra honra a tradição sinfônica e os planos se alternam conforme a cadência das peças musicais aumenta. Há um balé de luzes e sombras, janelas que se acendem e apagam como se seguissem a regência do maestro que vive no prédio.
“Mirante” é um documentário que examina transformações físicas e sociais em Porto Alegre com elementos de linguagem inventivos e dinâmicos. O estudo de mais de 10 anos da paisagem urbana gaúcha evidencia alterações e permanências no período. Os prédios, lajes, torres e antenas com urubus dividem espaço com o discurso político na televisão. A sinfonia urbana contemporânea de Rodrigo John é engajada e, consequentemente, crítica. Assim, a obra atinge seus melhores momentos quando propõe o contraponto entre espaço físico e política. A vida dos outros até interessa, mas muito pouco em relação ao macrocosmo estabelecido. Os indivíduos fazem parte de um todo: o prédio, a sociedade, Porto Alegre. Por esse motivo, as inserções pessoais de vídeo caseiro, por exemplo, soam um pouco deslocadas. No entanto, isso em nada altera a potência do longa, que capta habilmente a transformação de uma metrópole ao longo do tempo.