Millennium Mambo
Síndrome do amor obsessivo
Por Pedro Sales
Olhar de Cinema 2024
“Ela terminava com Hao-Hao, mas ele sempre a encontrava. A chamava, a pedia que voltasse. Uma e outra vez, como se estivesse enfeitiçada ou hipnotizada. Não podia escapar, sempre voltava”. Enquanto a protagonista, filmada em plano sequência, anda por um túnel, esta narração que inicia “Millennium Mambo” sintetiza a inevitabilidade do retorno para um amor obsessivo que permeia toda rodagem. É a virada do milênio, melhor momento possível para mudanças e para pôr ponto final em algumas coisas, lembra a narradora dez anos após os eventos que marcam a diegese da obra. Entre a reflexão tardia e as vivências do presente, o diretor taiwanês Hou Hsiao-Hsien se engendra com uma distinta mise-en-scène nos dilemas da personagem, na volatilidade da juventude e entre dois mundos que a dividem.
Vicky (Shu Qi) é recepcionista em um bar. Suas noites resumem-se a saídas com as amigas ou ficar na casa do namorado Hao-Hao (Tuan Chun-hao), viciado em drogas e aparentemente envolvido com a criminalidade. O roubo do Rolex do próprio pai, pelo menos, é um dos delitos confessos em tela. Paralelamente à relação conturbada e cíclica com o namorado, a protagonista ainda é, por assim dizer, a menina dos olhos de Jack (Jack Kao), um mafioso local com bastante influência. Portanto, são estes os dois mundos que se prostram diante de Vicky e transpassam sua juventude. Entre a síndrome do amor obsessivo e o paternalismo pretensamente terno de um homem poderoso. Em meio a isso, o filme muitas vezes cria uma espécie de isolamento da personagem, como se ela ocupasse um não-lugar e todas as interações, divertidas como as festas ou combativas como as brigas, a encaminhassem para a solidão.
Neste sentido, a direção de Hou Hsiao-Hsien em “Millennium Mambo” é determinante para a construção dessa aura introspectiva que por vezes toma Vicky. As cenas são filmadas em sua maioria com planos muito longos, sem cortes. Nos diálogos, por exemplo, não há campo e contracampo, a panorâmica já é suficiente para alternar os interlocutores. Diante disso, muitas vezes a personagem é enquadrada sozinha, mesmo quando há mais alguém com ela. O controle cênico também reforça essa noção, na medida em que a maioria das cenas são internas, dando essa sensação de enclausuramento emocional por aspectos formais. Por mais que o cineasta tenha essa predileção por planos longos, com uma temporalidade dilatada, em momento algum perde-se a fluidez visual. A câmera está sempre em movimento, explorando o espaço restrito e evidenciando novas características de lugares que já pensamos conhecer.
O tempo e a imagem, então, se amalgamam em um fluxo quase das memórias, sem uma ordem muito definida. Devido a isso, a estrutura elíptica que Hou Hsiao-Hsien traz ao roteiro de Chu T’ien Wen é extremamente aplicável. As ações se associam conforme se lembra, o que explica eventuais digressões temporais e o uso de câmera lenta para realçar determinados eventos como que demonstrando sua maior permanência. A noção do cinema de fluxo, assim, é internalizada na obra. O crítico Stéphane Bouquet, autor do termo, define-o como um princípio de escoamento permanente e infinito. Para o autor, o cineasta não deve organizar uma forma definida para fazer um discurso, mas intensificar zonas do real, deixando ao real o móvel. Narrativamente, o conceito aplica-se à experiência da personagem entre suas espirais e fluxos amorosos, em que nada parece sólido e sempre suscetível à mudança.
No aspecto estético-formal de “Millennium Mambo“, o fluxo também se faz presente. Se o tempo de Hou Hsiao-Hsien na obra parece incerto, produzindo um estado de suspensão, existem momentos em que os planos também fazem o mesmo. A plasticidade da imagem do cineasta por vezes pende ao abstrato, evocando uma sensorialidade no lugar da objetividade. As cenas nas festas com um uso forte do azul e da luz negra consegue desvanecer o que há de real, ou pelo menos os detalhes disso. O uso de superfícies no primeiro plano também causam esse efeito, como personagens enquadrados por frestas mínimas de paredes, ou os focos de luzes que ocultam o rosto de Vicky. Na realidade, todo o trabalho de câmera, apesar de discreto, destaca-se na obra, seja na potência dramática da câmera lenta, no neon como síntese da vida noturna e jovem de Taiwan, na temporalidade e duração dos planos que guiam a narrativa e até mesmo no aproveitamento inventivo do circuito interno das câmeras de segurança antecipando a entrada em casa, tudo em um plano único.
O caos perceptivo que marca a estética do fluxo, conforme Luiz Carlos Oliveira Júnior, é condição básica para a experiência fílmica proposta em “Millennium Mambo”. A inconstância elíptica que marca a forma do filme é também totalmente condizente com a narrativa de Vicky, suas idas-e-vindas, isolamentos e jornadas repentinas. Hou Hsiao-Hsien incorpora, então, na sua direção uma representação narrativa e visual da fugacidade juvenil vivida pela protagonista. Pode-se dizer, ainda, que a própria trilha sonora também cria esse efeito com o tema eletrônico. Portanto, estar diante desta obra é dividir a solidão de sua personagem, acompanhá-la em uma torrente de encontros e desencontros e refletir com sua narração dez anos mais velha, já distante do início do milênio. Mas para além disso, é ser conduzido por um fluxo de imagens dotadas de alto impacto visual como se estivesse enfeitiçado ou hipnotizado.