Meu Corpo é Mais
Pesadona: O corpo gordo como manifestação de autoaceitação e poder
Por Roberta Mathias
O documentário “Meu corpo é Mais” da diretora e roteirista Susanna Lira consegue reunir um conjunto de entrevistadas diverso que tem em comum o corpo gordo- o qual reivindicam como parte de sua personalidade. Todas também compartilham o fato de utilizar ativamente em seus trabalhos esses corpos de alguma maneira e ,talvez, a característica principal da narrativa, a autoaceitação desses corpos como potência a ser trabalhada como conhecimento de si mesma e da sociedade como um todo.
A primeira coisa que pensei logo nas primeiras sequências do filme foi na prática da yoga que nos faz pensar em um corpo físico e em um corpo etéreo que precisam estar com os chakras bem equilibrados para que nenhuma parte de nossa vida seja negligenciada. Não é mera coincidência o fato de uma das entrevistadas ter encontrado na Yoga a abertura para aceitar seu corpo tantas vezes conectado a uma imperfeição que precisava ser arrumada.
Uma das características fundantes da sociedade capitalista é o controle dos corpos, nos lembraria Foucault. A partir desse controle, devemos seguir “recomendações” do regime social , cultural e mercadológico que nos impõe modelos bem definidos do que é certo ou errado, aceitável ou inaceitável. Essa prática binarista funciona bem até meados do século XX quando começa a ser desmontada. Ainda assim, em 2018 quando o documentário foi filmado e ,hoje, ainda enfrentamos e somos julgados por padrões aos quais não necessariamente queremos atingir.
O movimento negro, o movimento feminista , o movimento LGBTQI+ podem ser lembrados como algumas frentes de combate que se posicionam para reivindicar espaços que ,até então, eram negados a determinados corpos. MC Carol, uma das primeiras entrevistadas lembra como a não aceitação na infância foi marcante para que desenvolvesse traumas e não conseguisse enxergar o próprio corpo como espaço de integração com uma subjetividade que somente ela pode definir. Nesse sentido, precisamos lembrar da necessidade do pensamento interseccional para entendermos algumas fragilidades que nossa cultura encontra na aceitação do outro distinto do padrão imposto como participante integral da esfera social.
Carla Akotirene, no livro “O que é interseccionalidade?” nos lembra que é necessário pensar em formas de poder e que deem “instrumentalidade teórica-metodológica à inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cis-hétero-patriarcado “. Com isso, queremos dizer: Carregamos em nossos corpos múltiplos traços que são indissociáveis e que sofrem ataques de diversas frentes. Por isso ,a participação de MC Carol se torna tão central para que a narrativa do documentário possa ser construida e ,aí, se abrir aos novos corpos que aparecem.
E, eles são mesmo diversos: uma babá, uma professora de yoga e artistas das mais diversas linguagens nos mostram o que se aproxima e o que se distancia em nossos olhares para seus corpos. É fundamental perceber como a aceitação se torna um processo para todas, independente do número que vestem , da classe social e da raça. No entanto, precisamos lembrar que a aceitação da sociedade, essa ,sim, segmenta esses corpos como mais ou menos aceitáveis de acordo com as características que as fazem ficar mais perto do padrão desejado. Curiosamente, além de MC Carol , é uma professora de yoga Vanessa Joda que reforça saber que o fato de ser branca, loira ,de olhos claros e ser considerada uma gorda ainda com padrões aceitáveis a coloca em um lugar de privilégio em relação a outros corpos gordos.
Ainda que não seja dito, o fato de entrar em lojas e sair sem encontrar roupas, as cadeiras pequenas em transportes públicos , faculdades e espaços culturais e os olhares são para todas reafirmação de uma coisa: O corpo delas não cabe nessa sociedade. A luta diária pela qual um corpo fora do padrão passa já vem sendo debatida em nosso país desde o Movimento Modernista, que trouxe algumas mulheres se posicionando em relação ao seu espaço na arte. No entanto, todas as artistas reclamam que é justamente nesse espaço ,que deveria ser por essência pluralista, que encontram a maior dificuldade.
No momento atual, a quebra de padrões sociais torna-se um caso de vida ou morte(efetivamente). Infelizmente o neofascismo fantasiado de neoliberalismo dita as regras de quem quer ou não que participe do jogo democrático- e , por mais que possamos discutir até que ponto essa democracia se tornou realidade efetiva para alguns corpos, o que acho essencial- precisamos também refletir que ter como discurso oficial a tirania nos faz ter um gosto amargo na boca, como os remédios de emagrecimento “naturais” vendidos em tantas lojas como opção antes da bariátrica.
“Meu corpo é Mais” nos faz também refletir sobre isso. Em uma fala bem contundente , uma médica ressalta que nem todos corpos gordos são doentes, como nem todos corpos magros são saudáveis. Há nesse imaginário algo que se perdeu em grande parte por conta e um capitalismo que nos devora e que nos faz conviver com a sensação de imperfeição constante. Assim, consumimos de acordo com o que o mercado diz que nos fará mais feliz.
A felicidade tem morada, no entanto, no “ser árvore” – como diria o poeta Manoel de Barros. As árvores que assumem toda a forma que quiserem, livres, não essas que aprendemos a podar nas cidades.
Nosso corpo não pode ser podado e , nesse momento, é essencial que sejamos de uma natureza silenciosamente rebelde, à qual se refere a médica que participa do documentário, mas também de uma natureza inflamada de rebeldia. “Meu corpo é Mais” nos incita a falar sobre questões difíceis que perpassam a educação de quase todas as mulheres, que utilizemos essa fagulha para nos posicionarmos em protesto contra qualquer discurso que pregue a valorização de alguns corpos em detrimento de outros. Somos diferentes e devemos lutar por essas diferenças. A unidade que o falso discurso de igualdade implementou precisa ser estilhaçada. Que venham mais corpos, que venham mais mulheres e, que sejam bem falantes.
O filme, exibido inicialmente no GNT.Doc encontra-se na Plataforma Now, da NET. Termino com a frase de Isabel , outra entrevistada de Susanna Lira: “Eu não sou corajosa, eu só existo”. Existamos então.