Percepções Angustiantes
Por Jorge Cruz
Projeta às 7 Cinemark
O quanto nossa experiência coletiva afeta nossa existência e vice-versa? Desde o século XVIII o pensador escocês David Hume alertava para a importância de nossas percepções individuais em nossa formação. “Marés”, a estreia de João Paulo Procópio como diretor e roteirista, reflete um pouco da ideia da arte como cópia das nossas impressões. Comungar da angústia sofrida pelo protagonista Valdo (Lourinelson Vladmir) é fundamental para que o longa-metragem se torne atrativo.
O filme se apresenta como história a partir do ponto de vista de um fotógrafo representante de classe média que cumpre todos os padrões alheios às crises de nossa sociedade, residente em Brasília, um. Mesmo assim, ele não goza de uma vida agradável, já que o microcosmo de sua existência não lhe agrada. Traçando um paralelo com a situação política do Brasil, o roteiro tenta enquadrar as questões particulares de um problemático Valdo com a falência das instituições do país. Não ousa em nenhum momento apontar fatos geradores, é fiel à crueza dos fatos, deixando o espectador ser angariado a partir da ótica particular de sua vivência. É a típica produção que dificilmente arrebatará multidões, mas todos aqueles a serem sensibilizados sairão de suas sessões condescendentes com os dramas de Valdo.
Após uma breve narração, nos é mostrado o relacionamento do protagonista com Clara (Julieta Zarza). O Carnaval tem seu fim quando o casal não aguenta os problemas de Valdo com o álcool. Só que uma criança de três anos precisa ser criada e o homem precisa equilibrar todas as tentações de se jogar no buraco com o modelo de pai que lhe é imposto. “Marés” não se preocupa com lições de moral, ele é feito para nos aproximar do incômodo de Valdo. Quando a condição imposta para a guarda compartilhada é que o homem frequentasse o Alcoólicos Anônimos, sequer o próprio recebe isso como uma imposição. Há um chamado para a libertação de Valdo de si mesmo, uma autonomia que resultaria em uma plenitude de existência que é negada pelo próprio.
Mesmo que sempre que possível Valdo tente demonstrar que não é digno de pena, que possui ferramentas psicológicas e sociais capazes de montar um recomeço. Essa via dupla de sensações permite que o personagem jamais seja questionado como homem comum, do tipo que poderia fazer parte de uma história que alguém da família lhe contou. Talvez seja esse o grande mérito não só do roteiro, mas do trabalho entregue pelo ator Lourinelson Vladmir. Um naturalismo que é transportado para Valdo, que nunca parece se esforçar para ser aquilo que ele não é – seja no respeito pelo trabalho, seja na entrega da hora do sexo. A prova é que, em dado momento, o uso do realismo fantástico de maneira pontual é identificável com tanta clareza, que se torna indiferente na montagem do filme que isso se caracteriza no final da cena. O transbordamento de vida real é tão latente, que é bem difícil questionar qualquer comportamento dos personagens sob o argumento de inverossímil.
Partindo da lógica de que o personagem-narrador se revela alguém cada vez mais inconsequente e imaturo, a condução dos aspectos técnicos do filme o torna errante e irregular, tal qual a visão de mundo compartilhada pelo protagonista. O longa-metragem beira o histriônico sempre que nos vemos prestes a presenciar um surto de Valdo. A despersonalização de Brasília a partir da crise política não é focada da maneira como o primeiro ato da produção ensaia fazer. Essa ausência de conectores transforma uma boa intenção em uma espécie de gordura do roteiro. Só que as pequenas lambidas dessa contextualização histórica e a suposta influência na personalidade do anti-herói não incomodam e “Marés” segue seu caminho sem transtornos que não sejam aqueles por ele tencionados.
Há uma mistura de sensações que permeia todo o filme. Claro que há dramas muito mais graves e menos irremediáveis no mundo, quiçá no quarteirão da casa de Valdo. Só que a decadência de um ser humano, que parece se desmontar na nossa frente não passa incólume. Parece a gênese de uma angústia causada por crise em que, ao mesmo tempo em que somos causadores, devemos ser pelo estancamento. João Paulo Procópio entrega uma obra econômica em suas reviravoltas, mas que consegue ser extremamente tocante em cenas como uma em que Valdo finalmente entende o fundo do poço onde sua vida se encontra e chora copiosamente ao som de “Me Leva” de Agepê. Em “Marés” parece que sempre estamos dando uma chance, estendendo o braço para alguém que não consegue se ajudar.