Manas
Do micro ao macro: um filme que navega por dentro
Por Fabricio Duque
Durante o Festival do Rio 2024
O melhor elogio que um filme pode receber é quando dizemos que não conseguimos tirá-lo de nossas cabeças. É como se obras assim transferissem, patologicamente, uma sensação tão inerente a nossas emoções, que somos abduzidos pela narrativa apresentada. Foi exatamente isso que me aconteceu quando assisti ao filme “Manas”, da realizadora brasileira Marianna Brennard, estreante na direção de um longa-metragem de ficção (dos documentários “O Coco, A Roda, O Pneu e O Farol”, “Francisco Brennand”), na competição oficial Première Brasil do Festival do Rio 2024 (vencendo o Prêmio Especial do Júri pela atuação da protagonista Jamilli Correa) e depois na Mostra de São Paulo 2024 (ganhando o prêmio de Melhor Filme Brasileiro), inicialmente exibido e premiado no Festival de Veneza do ano passado (vencendo o prêmio de melhor direção da Jornada dos Autores). O impacto desta obra mexeu tanto comigo que só consegui escrever esta crítica quando a revi.
“Manas” é o típico filme coming of age construído de dentro, numa atmosfera intimista, de narrativa ficcional baseada no tom documental de uma realidade comportamental, mas com o preciso cuidado estético para transformar tudo isso à tela, como uma experiência mais humanizada e mais empática dessa identificação sentimental. Quer-se aqui a sensação consequente e o efeito devastador que marca a vida dessas personagens (que para sobreviver precisam agir, em muitos casos de forma radical), que existem em uma “costumeira”, social “prática cultural”, em que mulheres sofrem abusos sexuais por homens alimentados pelo imaginário machista de poder (incluindo membros diretos da família). Sim, Marianna poderia ter escolhido um caminho completamente diferente. Mas não. Este filme poderia ser gritado, poderia ser didático, poderia ser um manifesto feminista. Mas não. Preferiu-se um discurso sugestivo pela sutileza dos olhares, dos silêncios, do entendimento perspicaz (e cúmplice), articulado assim pela metafísica da vivência, que está entre a consciência coletiva da resignação calada e a ação individual de repúdio ao que acontece.
Sim. Este longa-metragem adentra camadas estruturais de nossa sociedade pela fluidez, pela observação dos movimentos desse organismo tóxico. Nós somos envolvidos nos dramas dessa família, que representa, como um estudo de caso, as tantas outras que passam pelas mesmas situações. Sim, Marianna poderia muito bem ter seguido o caminho do mais fácil, da narrativa mais palatável, mais novelesca, mais folhetim, mais explícito, mais direto, porque as próprias dificuldades de se filmar na Ilha de Marajó já permitiam seu “crédito condescendente” por parte do público. Marianna poderia sim ser mais “preguiçosa” e dizer que as limitações a impediram de fazer mais. Mas não. A Mana não queria internalizar o já normalizado e o já automatizado. Mariana resolveu ter trabalho e imprimiu o conteúdo, o aprofundamento dos detalhes, e, nunca, navegar pela superfície. Foi nesse momento que “Manas” encontrou sua maestria, com cheiro, gosto e essência paraense tecnobrega das versões de músicas “colonizadas” (a projeção-expectativa de sucesso, de “salvação” e de “grama mais verde”), açaí com farinha e uma tradução cinematográfica de poesia orgânica, com uma fotografia etérea-realista e de naturalismo fílmico.
“Manas” quer a viagem. Quer a experiência sensorial. Quer a concretude dos espectros. Quer filmar a invisibilidade e o abstrato. Quer a retro-transferência. Quer a alma do cotidiano. Subir em árvores, preparar todas as etapas da refeição, aceitar outras “moedas de troca” para sobreviver. Não, não é fácil ser mulher. Mas o filme não quer pena de ninguém. Não quer ser vítima. Quer expor uma questão terrível que acontece nos lugares mais internos do país. Quer nos ambientar ao dia-a-dia deles: os cultos da igreja evangélica, a rede rasgada, tirar a carteira de identidade, a novela na televisão (e o crush Cauã Reymond). Como disse, a esperança está fora dali. Dessas crianças de treze anos que foram obrigadas a serem adultas antes do tempo (a gravidez e os abortos), mas que não perdem a euforia do futuro, ainda que saibam o quão distante isso é. “Tem coisas que não adianta você mexer. Isso não acontece só com você, mas vai passar”, nossa protagonista escuta, mas não mina seu sonho, enquanto dança “Total Eclipse of the Heart” abrasileirada para “Está no ar” pela voz de Valéria Paiva do grupo “Fruto Social”.
“Manas” incorpora os signos, e suas características do redor, os transformando em uma obra de cinema. É um filme que segue fiel até o final. Marianna não quer suavizar. Quer “resolver” a vida dessa família que aborda. É um filme vingador. Um filme terapia de choque com “final feliz”. Um filme que quer entregar um mínimo de esperança a esses seres vulneráveis, unicamente por terem nascidos mulheres. É exatamente por tudo isso que “Manas” me impactou. Não só pela potência e pela força de seu tema obrigatório a ser discutido, mas especificamente por sua forma narrativa escolhida. Pelo estético cuidado fotográfico de Pierre de Kerchove; pelo roteiro de Marcelo Grabowsky, Felipe Sholl, Marianna Brennand, Antonia Pellegrino, Camila Agustini, Carolina Benevides; pela precisão de sua câmera (que se torna mosca a nossos olhos); pela direção de arte de Marcos Pedroso; pelo trabalho sonoro de Valéria Ferro e de Miriam Biderman; pela montagem de Isabela Monteiro de Castro; pela irretocável interpretação de todos seus atores e atrizes, especialmente a da personagem principal, encarnada pela atriz estreante Jamilli Correa, além da excelente Fátima Macedo e da Dira Paes), enfim, pois é, “Manas” é a verdadeira e mais completa tradução do que é o cinema. O filme teve apoio ativo de Walter Salles e dos irmãos franceses Jean Pierre e Luc Dardenne.