Mal Viver
A humanização da melancolia patológica
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Berlim 2023
O realizador português João Canijo exibiu duas obras paralelas e de perspectivas diferentes da mesma trama no Festival de Berlim do ano passado. Uma, integrante da competição oficial ao Urso de Ouro, “Mal Viver”, a outra, “Viver Mal”, na mostra Forum. Os dois filmes buscam complementar a história, estendendo visões de suas personagens, enquanto hóspedes em um hotel familiar, herdado e administrado por cinco mulheres na costa norte de Portugal. Um deles, o vencedor do Prêmio do Júri, “Mal Viver”, filme que será analisado aqui, chega agora aos cinemas. Mas para entender completamente toda a ambiência sensorial deste longa-metragem é preciso que os espectadores se embrenhem nas características típicas dos portugueses, porque são essas idiossincrasias melancólicas, num misto de defensiva cúmplice e vulnerabilidade individualista, que dão o ponto exato de sua condução narrativa.
“Mal Viver” apresenta-se como um estudo existencial das angústias patológicas (e até mesmo buscadas), e dos desejos genuínos dos portugueses, que transitam entre uma simplicidade absurda da organicidade física e uma complexidade racional da psiquê mais inconsciente. Por mais que esses seres humanos, enquanto indivíduos sociais, tentem, não conseguem se liberar das amarras pragmáticas (e essencialmente literais) de seus quereres mais intrínsecos, mas extremamente conflitantes e paradoxais. Parece que essas personagens optaram pela toxicidade do viver mal, pesando, por costume e por aceite próprio, sentimentos, emoções, ações e reações com o pessimismo altamente realista de uma ideia da realidade. Eles sentem prazer na alimentação da dor. João Canijo faz parte desse tipo de gente que busca trazer toda essa atmosfera a sua mise-en-scène. A narrativa de “Mal Viver” desenvolve-se pela sinestesia. Ao exprimir a verdade sensorial por trás do comportamento artificial, nós espectadores percebemos além da metafísica. Essa transcendência encontra o mais bruto dos sentimentos humanos, os menos lapidados, os mais antissociais. É como se toda embalagem da imagem-aparência que mascaramos aos outros não existisse mais, nos tornando espelhos.
Quando adentramos nas intimidades “fofocas”, bem à moda de Nelson Rodrigues (e suas reviravoltas tão surreal possíveis) dessas pessoas, que são agravadas pelo estágio em que estão: de férias em um hotel (e que criaram a pressão de se divertir durante esses dias, deixando lá fora todas as resoluções futuras a serem tomadas), então nós “ganhamos” uma “mentoria” (de como não agir em determinados momentos) sessões observacionais de terapia psicanalítica-cognitiva, e assim vemos que todos nós somos tão previsíveis dentro dessa pseudo universalidade que rege o mundo (e os universos particulares de cada um). “Mal Viver” acontece ora por planos longos e distantes, ora por close, ora pela câmera estática, que personifica o extracampo. Essa contemplação prolongada, como alguém colocar cloro na piscina, nos convida a existir junto do lugar de dentro em que essas personagens “residem” por enquanto, entre “chatices”, tédios, neuroses, chantagens, jogos mentais, formalidades teatralizadas, comportamentos sistemáticos, barulhos, necessidades de relaxamentos e vontades únicas de quem não gosta de surpresas e de quem as causa. Sim, a neurociência explica que quanto mais guardamos para depois a explosão de algo que nos incomoda, é muito provável que esse meio desperte defesas. Aqui, por exemplo, todos são diretos, agressivos e sem “papas na língua”, atacam-se com ofensas-verdades. São do “contra” com todo mundo. E muito disso vem da fotografia, que busca a metáfora nos espelhos, no desfoque, na luz amarelada, na sombra da luz vermelha.
Talvez (muito provável) no fundo todas essas personagens são assim para esconder suas vulnerabilidades e a solidão crônica (que busca a atenção, mas encontra a hostilidade já internalizada). Há um orgulho social em não ser fraco. Em não deixar transparecer qualquer resquício de humanidade. “Mal Viver” é uma crítica a esse modo amargo de existir-espectro (com uma naturalizada elegância), que “copia” e segue os passos da maioria “rabugenta”. Cada um aqui ama do seu jeito, quando implica, quando provoca, quando é maldoso/malvado, quando “atira pedras”, quando briga por miudezas e quando chegam aos “finalmente” das agressões físicas (combinadas com manipulações e torturas psicológicas). Uma dessas personagens-gerentes construiu por exemplo uma realidade própria e a vive bipolar dentro de uma agenda de precisão imutável (“ninguém pode controlar a vida”, mas ela tenta). Entre quatro paredes, ainda que com os sons vazados do sexo, das discussões, das exposições internas, eles voltam a ser sensíveis, mais solitários, mais co-dependentes de carinhos e são “visitados” por pensamentos mais radicais-fatais, talvez “inspirados” demais em Walt Whitman, e seus versos livres, explícito na referência da trama. “Só gosto da pessoa, quando a mato em minha cabeça”, diz.
“Mal Viver” é sobre “ter o coração fora de mim”, sobre o amor ser uma “agonia”, sobre julgamentos vazios. “É preciso saber viver”, já cantava a música do Titãs, mas aqui o “não saber” é que dá todo tempero do existir, com um fado rasgado na melancolia e na “tendência” angustiada. Esse tom sensorial aumenta os decibéis ao longo do filme, e também nosso desconforto, devido às constantes e tóxicas análises das almas humanas em forma de pessoas coletivas. “Mal Viver” é um filme para se permitir se sentir mal. De filha versus mãe versus filha. De reencontrar os verdadeiros sentimentos humanos que foram “podados” no conceito da estar positivo o tempo todo. É por isso que português deve viver mais, porque eles aceitam que tem horas que se vive mal mesmo.