Curta Paranagua 2024

Madam Chief-Minister

She is the boss!

Por João Lanari Bo

Madam Chief-Minister

Um dos países mais complexos do planeta – talvez o mais complexo de todos – é a Índia, esse colosso milenar que desponta ao sul da Ásia central, desafiando nossa lógica interpretativa e sempre surpreendendo. Como é extremamente populoso e diversificado, tende a voltar-se para dentro, abstendo-se de interações externas – salvo com nações que acolheram (e acolhem) imigrantes indianos, como é o caso dos EUA e Inglaterra (e não do Brasil). É ralo também o fluxo de produtos audiovisuais indianos que circulam internacionalmente, apesar da enorme quantidade de produções de Bollywood e um sem número de independentes. Com a crescente prevalência do streaming, bem ou mal um vetor de distribuição global, temos acesso a filmes que jamais seriam vistos, mas agora podem incluir-se na categoria dos já vistos. Um exemplo é “Madam Chief Minister”, drama político dirigido por Subhash Kapoor em 2021, disponível na Netflix.

O enredo dessa trama pode ser resumido da seguinte forma: “Madam Chief Minister” é um relato fictício dos altos e baixos na vida de uma poderosa líder Dalit, que se torna ministra-chefe do estado mais populoso e politicamente carregado da Índia, Uttar Pradesh. Não é pouca coisa. A população de Uttar Pradesh chega a 200 milhões de habitantes – se fosse um país, seria dos mais habitados do mundo. Uma população que herda tradições milenares consolidadas no inconsciente coletivo – para usar uma expressão simplificadora, mas útil – e que continuam a permear o tecido social de maneira indelével, como dizem os sociólogos.

Dalit pode ser definido como grupo de indivíduos párias, excluídos do sistema de castas, que realizam trabalhos considerados desprezíveis, como limpeza de esgotos, recolhimento do lixo e manejo com os mortos. Essa é uma definição ultra redutora, o sistema tem milhares de variações e classificações: importa notar que os conceitos de pureza e poluição são fundamentais para demarcar o território dos Dalit, conhecidos como intocáveis. Tomar água da mesma fonte, compartilhar ambientes comuns, como um templo, tudo isso é interditado: entre as castas paira uma segregação espacial e atmosférica.

O filme de Subhash Kapoor começa com um Dalit sendo morto a tiros na mesma noite em que sua filha nasceu: Tara (Richa Chadha) cresce e exibe uma crescente tendência rebelde – cabelo curto, língua afiada, calça jeans. Bibliotecária em uma universidade, engata um tórrido relacionamento com Indramani (Akshay Oberoi), líder estudantil proveniente de castas superiores e reacionárias. Ela engravida dele, que exige o aborto: não há casamento possível com uma Dalit. Tara se rebela, e é brutalmente atacada. Encontra abrigo com Masterji (Saurabh Shukla), líder espiritual de um partido político de castas inferiores, que a torna sua protegida. Sua ascensão ao pináculo do poder é irresistível: Tara é corajosa, não hesita em enfrentar os inimigos, num clima de política regional contaminado de práticas milicianas, assassinatos, sequestros, vinganças e ambições desmesuradas de poder.

Madam Chief Minister” é um filme político, mas é também, sobretudo, entretenimento. A diferença com os produtos Bollywood é que não há números musicais: prevalece a luta política e a pancadaria. Estamos na Índia moderna – o artigo 15 da Constituição de 1950 proíbe discriminação com base na religião, raça, casta, sexo ou local de nascimento. Muitos questionam a real eficácia da lei. Duas referências históricas balizam o filme de Kappor: a ex-Ministra-chefe de Uttar Pradesh, Kumari Mayawati, Dalit que ocupou o cargo diversas vezes entre 1995 e 2012; e o Dr. BR Ambedkar, Dalit e reformador social, um dos responsáveis pela Constituição de 1950 e ativista contra as atrocidades enfrentadas pelos intocáveis.

​Mayawati foi uma popular (e populista) liderança: como Tara, não hesitava em forjar alianças inesperadas para garantir assentos de Dalits no Parlamento local. Ícone para a comunidade das castas inferiores em toda a Índia, exibia certa propensão para grandezas exibicionistas e pomposas, como as comemorações de seu aniversário, celebradas pela massa fanática com avidez. Dr BR Ambedkar, cuja estátua domina a entrada do retiro de Masterji, o guru de Tara, foi um radical e brilhante opositor do medievalismo das castas, além de defensor de propostas inovadoras, entre outras sobre direito das mulheres. Chocou-se frequentemente com Mahatma Gandhi (que não era Dalit), a quem acusava de conluio com as castas superiores. Gandhi nunca foi um Mahatma; recuso-me a chamá-lo de Mahatma, disse Ambedkar. Mahatma é um termo honorífico usado na Índia: significa grande alma, seres humanos considerados perfeitos, Mestres, Santos.

No capitalismo contemporâneo que caracteriza esse imenso país, o arcaísmo das castas reaparece como uma espécie de retorno do recalcado na luta de classes versão século 21. O futuro dependerá daquilo que fazemos no presente, já dizia Gandhi.

3 Nota do Crítico 5 1

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