Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental
A estranheza sem máscaras do material bruto humano
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Berlim 2021
Em alguns filmes, a maestria mora mesmo na sensação de ultra-estranheza causada aos espectadores, muito pela falta de uma normalidade condicionada a que estamos acostumados, bagunçando inclusive a sistemática de nossos sinapses construtivas, que se perdem no emaranhado de inúmeros caminhos narrativos. O longa-metragem romeno “Má Sorte no sexo ou Pornô Acidental”, que venceu o Urso de Ouro do Festival de Berlim 2021, pode em muito adentrar a lista dessas obras de coloquialismo surrealista. Não só porque busca uma catarse coletiva para debochar do comportamento de idiossincrasia social de um povo, uma das características intrínsecas do Cinema da Romênia, mas especialmente por destituir a ordem pelo caos da forma.
Dirigido por Radu Jude (de “Uppercase Print”), “Má Sorte no sexo ou Pornô Acidental” quer criticar a sociedade de sua terra natal pela picardia barroca e circense, expondo cada um deles ao genuíno ridículo. Seu realizador quer potencializar a confusão de ser um humano enquanto indivíduo social, mas sem produzir tipos totalmente caricatos, e sim pela personificação de hipocrisias, preconceitos e limitações pensantes à liberdade do existir. E a melhor maneira de “mexer” nesse “ninho de maribondos” e, fazer uma necropsia metafórica, é pelo sexo, um tabu que retroalimenta toda a humanidade desde que o mundo é mundo. Talvez o ato sexual, tampouco os fetiches, não sejam a real problematização. Talvez o que verdadeiramente importa é a imagem apresentada ao outro, que logo gerará um julgamento contra uma reputação.
Ao explicitar uma relação sexual, a personagem professora da trama de “Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental” só ganha “fama” pelo vídeo gravado, em tom caseiro, íntimo, e divulgado pelo homem – por acreditar no orgulho de sua masculinidade e não medir que essa ação pode ser pior para mulheres, que adquirem o status de “vagabundas”. Tudo aqui é uma crítica ao comportamento dos romenos. Por uma lente de aumento. Que retira as máscaras em uma época que todos deveriam usar (não só no queixo), visto que o filme se passa durante a pandemia mundial do Coronavírus. A câmera, de cinema direto, tonifica nossa experiência sensorial, quase documental, pela imersão orgânica de acompanhar a personagens pelas ruas, como se fosse um movimento rotineiro em plano-sequência. A fotografia por sua vez desvirtua a atemporalidade com um presente que mais parece ter parado no passado. Nós vamos nos ambientando com o lugar. A limousine com música pop, gatos gritando em segundo plano, os outdoor em close, as pinturas nas paredes, o shopping. A personagem corta toda a cidade. Com olhares dos passantes não-atores, pegos de surpresa. Com os barulhos da cidade. E com direito a batidas no nariz de um urso do supermercado que anima crianças.
“Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental” provoca o humor naturalista popular. Aquele de conversas banais, de confusões em família, do descaso alienante dos “estúpidos” em rir se pegou Covid. É a vida normal acontecendo, que não parou pelo medo. Que aglomera. Que briga, xinga e discute com o outro. Como se estivessem certos. Às vezes, só para jogar o tempo fora. “Todo mundo é inocente, que não é culpa de ninguém”, diz-se, nos mostrando que no mundo inteiro os seres humanos são iguais uns aos outros e se comportam da mesma forma. O filme é dividido em partes. A segunda representa anedotas das “estupidezes” do mundo, como a guerra e os desfiles militares., por exemplo, por fotos e imagens de arquivo. De brancos assediando e índios em dias pra fertilização. São vários momentos constrangedores e errados da história. São esquetes de acontecimentos vergonhosos na Romênia, entre fascismo e seus ditadores.
O longa-metragem continua com fragmentos da História. Como o ditador de 65 que foi executado; 89 cenas de cinema; e uma guia de turismo que explica sobre os monumentos. A neve. Crianças que são vítimas de violência doméstica. A nudez. Os desenhos. Uma sequência de erros da humanidade das pessoas de tudo. Quase um dia na vida da Romênia. Isso tudo nos infere a Eduardo Coutinho e seu “Um Dia na Vida”. Segue. Com a pornografia que significa retrato de uma prostituta. Nesse ponto, a atriz da parte um deste filme está com o espelho do lado e rindo. Mais animais nojentos. São revoluções sem curadoria. Sexo apelativo. E lutas que problematizam ações.
Já na última parte três, “Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental” não só quer o surrealismo, nem o sarcasmo, mas a verdade completa. É um surto. Uma catarse de ideias, achismos e argumentos retrógrados. Que usam a religião católica e ou a moral e os bons costumes da família a fim de embasar seus pontos. É uma sitcom. Volta à primeira história e a discussão das consequências de um vídeo explícito vazado de uma professora de uma escola particular de classe alta. Os pais dizem: “Não é mais privado porque vazou”, “Vai traumatizar minha filha”. Esta parte é uma fábula-julgamento. Um teatro do absurdo, com iluminação de contos-de-fada, mais fantasiosa , mais lúdica. Cada um representa um tipo ideológico da sociedade. Por mais que pareça um “Escolinha do Professor Raimundo”, pelo humor pastelão, a mensagem que se quer transmitir é a de uma superexposição das individualidades exacerbadas desses indivíduos humanos, que foram “jogados” a ter que aceitar o convívio social e ainda lidar com todas as diferenças. “Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental” chega a sugerir que a vida não faz sentido. Que seus “moradores” daqui já nasceram datados e continuam errando porque podem. Ora, ora, o livre-arbítrio. Será que o conceito de mundo deu certo? Não será demais viver com tanta gente que pensa e age diferente? Filosofias à parte, a maestria deste filme está em não entendê-lo e não conseguir decifrá-lo logo de imediato. Nada aqui é óbvio. Mastigado. Incomoda, constrange, sobe o tom, até mesmo comete deslizes e barrigas, mas prova que o existir só funciona se “mascararmos” o material bruto com subterfúgios, dúvidas, buscas constantes, supérfluos e a comédia da vida privada, que vira pública, para ávidos curiosos.