Curta Paranagua 2024

Lugar Seguro

Autoficção excruciante

Por Pedro Sales

Durante o Festival Olhar de Cinema 2023

Lugar Seguro

Cada um possui seus próprios métodos para superar – ou ao menos tentar – as dores mais profundas na alma. Enquanto um optam pelo silêncio e internalização do sentimento, outros preferem expor o que sentem. O diretor croata Juraj Lerotić empenha seus esforços nesse último grupo, realizando uma espécie de filme-terapia autobiográfico, em que revisita um evento traumático acontecido em sua família. Além de dirigir e roteirizar um episódio de sua própria vida, ele ainda reforça essa vulnerabilidade e exposição quando assume o protagonismo e interpreta o personagem principal. Ao lidar com a sensível temática da depressão e tentativa de suicídio, “Lugar Seguro” se apresenta como um drama familiar denso e arrasador. Portanto, a obra leva o público a uma gradual e bem pontuada angústia, o que de certa forma permite ao espectador compartilhar da impotência e sofrimento enfrentados pela família.

Damir (Goran Marković) tenta se matar. Após sucessivas batidas na porta, culminando em um arrombamento, Bruno (Juraj Lerotić), seu irmão, consegue socorrê-lo e evitar o pior. A partir de então, a trama se desenvolve por 24 horas, entre a preocupação da família em mantê-lo internado e a imprevisibilidade do paciente. O longa já se inicia com uma tensão palpável. O resgate por si só já é filmado de forma muito direta. A predileção por planos longos e a recusa do corte são indutores de ansiedade. Em outro aspecto, a desesperança surge para além do caráter formal, o ato de Bruno é questionado pelas autoridades. A inversão de valores do salvamento dá a sensação de algo absurdo, até kafkiano, talvez. No hospital, por exemplo, os trâmites burocráticos atrasam e impedem a visita imediata, só podem vê-lo depois de preencher papeladas. O que remete um pouco ao filme “A Morte do Sr. Lazarescu” (2005), de Cristi Puiu, questionador da natureza burocrática na saúde. As semelhanças entre as obras, no entanto, param por aí, uma vez que esta se pauta sobretudo no drama vivido pela família.

Existe um controle tonal muito concreto na direção de Lerotić, a obra nunca sai dessa chave altamente dramática e angustiante, isso se dá principalmente por dois fatores: a mise-en-scène e as atuações. Os espaços de “Lugar Seguro” reforçam uma constante claustrofobia. Os planos enquadrados geralmente em plano médio dividem o espaço com a arquitetura, dessa forma, as paredes comprimem ainda mais os personagens, parecem reduzir a proporção da tela. Os já citados planos longos e estáticos atuam da mesma maneira, promovem um desconforto no espectador, afinal não há mais para onde olhar. Além disso, o público percebe o tempo de fato passar, ou seja, não há elipses no diálogo de Bruno e da psicóloga ou com outro funcionário do hospital, existe essa fidelidade na duração – e na demora burocrática. Em relação às atuações, Marković, que interpreta Damir, transmite efetivamente esse senso de desorientação e mesmo de incompreensão do que lhe aflige enquanto alguém com depressão. Por outro lado, Lerotić e Snjezana Sinovčić, que vive a mãe, estão sempre com a preocupação estampada no rosto, mas com um grito contido na garganta.

A potência do longa reside também na sensibilidade em que a depressão é tratada. Não há aqui, em momento algum, a espetacularização da doença, até porque o diretor conviveu bem próximo a essa realidade. Talvez este caráter cru e frontal para tratar do tema seja um fator determinante para o impacto que o filme causa. A centralidade nos três personagens e em dois lugares: a casa e o hospital, contribui para esse aprofundamento dramático, em que, além do temor familiar pelo fato de Damir ser incontrolável e imprevisível, existe também a cumplicidade nas fugas. A família o quer por perto e até acredita que a presença deles pode ser tão importante quanto a necessidade de um profissional. Entretanto, não é nenhum pouco fácil lidar com as paranoias e impulsos autodestrutivos de alguém que ama, tampouco é fácil ouvir essa pessoa dizer que acredita “ser algum tipo de mal”.

Dessa forma, “Lugar Seguro” é uma autoficção excruciante e dolorosa. Sem apelar narrativa ou formalmente, Lerotić desenvolve uma obra desoladora e enclausurante – pela sua crueza, não por arroubos estéticos -, daquelas em que o espectador sente o peso do que assistiu desde o início da exibição até os créditos subirem. Sendo assim, a progressão cadenciada dos acontecimentos, aliada à gradação dos sentimentos, transporta o público à angústia de Bruno/Juraj e da mãe. Em uma cena específica, o cineasta fantasiosamente já evidencia o final ao público, mas mesmo assim a potência do diálogo com o irmão escapa do mero impacto diegético, da realidade do filme. Nesse momento há uma evidente carga extrafílmica, é como se o próprio Juraj finalmente falasse o que gostaria com seu irmão, uma conversa imaginária, mas possível por meio da arte cinematográfica.

4 Nota do Crítico 5 1

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