Lugar de Fala
As Palavras, as Coisas, o Lugar (e as Pessoas)
Por Roberta Mathias
Durante o Festival do Rio 2019
Em um primeiro momento “Lugar de Fala“, segundo longa-metragem documental do diretor e escritor Felipe Nepomuceno, apresentado na Mostra Geração do Festival do Rio de 2019, me pareceu o curta “Talking Heads” (1980), de Krzyztof Kieslowski. Mas, somente em um primeiro momento mesmo. O longa, nascido como produto final de um exercício proposto na faculdade de Direção Teatral da UNIRIO investiga os corpos, seus medos, seus desejos, suas construções sociais, mas investiga também – de maneira sensível e sutil – a relação desses corpos com o espaço da UNIRIO.
Algumas perguntas se alternavam em minha cabeça enquanto assistia aos depoimentos/encenações dos alunos: O que nos mobiliza? O que nos dá medo? O que nos pega de surpresa sem nos paralisar? O exercício de Nepomuceno deixou os alunos livres para que eles escolhessem que parte de suas subjetividades gostariam de mostrar diante das câmeras. Como seres múltiplos que somos, entre esses fragmentos do ser, o diretor intercalou também pedaços do próprio Centro de Letras e Arte da UNIRIO. “Lugar de Fala” é, principalmente, uma narrativa sobre a relação entre essas pessoas, suas subjetividades e suas estratégias para se aproximar dos outros estudantes tão diferentes que encontraram durante a formação acadêmica. Talvez, por sua vertente literária, Nepomuceno tenha optado por uma narrativa que se aproxima da contação de histórias e, em alguns momentos, do próprio teatro – curso para onde se destinava o exercício, como dito.
A beleza do lugar de fala está aí – agora falando do conceito utilizado por Pierre Bourdieu e Judith Buttler, mas recentemente popularizado no Brasil por Djamila Ribeiro. O lugar de fala não pretende apartar as pessoas, separá-las. A ideia do conceito é de afirmação das identidades, justamente para entendê-las em seu caráter múltiplo. Não somos iguais. Nossos embates, medos, fraquezas, potências, não são iguais. Ao assumirmos essas diferenças talvez tenhamos que enfrentar uma questão essencial para as sociedades contemporâneas. Já que não somos iguais, como minimizar as diferenças ao acesso, ao saber e ao que seria garantido por (e pela) Constituição a todos os cidadãos? As lutas afirmativas precisam ser entendidas a partir desse viés porque, caso não o sejam, nunca conseguiremos enfrentar questões dessa envergadura enquanto sociedade.
É sutilmente que essa questão perpassa o documentário “Lugar de Fala” através de estudantes negros que reivindicam um outro saber para além daquele automatizado e mecanizado que parece ser destinado à alguns corpos. Os títulos intercalados entre as declarações poderiam conduzir nosso olhar, mas, ao contrário, eles deixam evidente esses atravessamentos que ocorrem entre cada discurso, cada aluno e cada espaço da Universidade. Uma das alunas, bissexual em relacionamento poliamoroso, pede pela aceitação de suas relações. E vai além. Com uma fala bem interessante e madura diz que parecemos presos a algumas questões que já deveriam ter sido resolvidas. Só posso concordar com ela.
A velha pergunta da filosofia- “As coisas existem se ninguém as vê?” – vem sendo substituída por uma Antropologia e Filosofia das Coisas que busca compreender que as coisas, elas mesmas, também têm potência e também interferem na nossa percepção de mundo, no nosso lugar de fala. Aqui, não se trata de explicar cada conceito, mas talvez de pegar um gancho deixado por um dos próprios alunos que, ao sair da sessão de abertura no MAM do Rio de Janeiro disse: “Parece um retrato da Unirio para mim…. Fiquei muito emocionado no final. De todos os lugares do Rio, foi lá que me senti em casa”.
O que é casa mesmo? Aquele lugar que nos acolhe. Aquele lugar no qual nos sentimos à vontade para colocar o pé em cima do sofá, andar sem roupa, sem amarras. Isso, Nepomuceno pareceu fazer muito bem ao longo do filme. Sem buscar a norma e sem conduzir as palavras, o diretor apresentou um retrato híbrido desse espaço formado pelo cruzamento de pensamentos, corpos, gêneros, afirmações raciais e de orientação sexual. Híbrido, em diálogo, como deveria ser qualquer espaço que se pretende do e para o saber.
Em algum momento de “Lugar de Fala” outro aluno, esse projetado na tela, diz: “Somos todos um planetinha”. E, não é que somos mesmo? Somos todos híbridos. Se, inicialmente, o filme nasceu como exercício para uma disciplina, ele também pode ser pensado como exercício para que possamos nos reaproximar dos diversos recortes que fazem parte do nosso ser. O que você escolheria apresentar se tivesse apenas alguns segundos ou minutos? Qual é a representação de si mesmo que te inaugura?