Luca
O amadurecimento da inclusão
Por Fabricio Duque
Disney Plus
O tempo é uma faca de dois gumes, podendo estar a nosso favor ou um completo inimigo. O tempo também não consegue fazer amizade com a rapidez, que acaba “comendo cru”. É a mesma metáfora de se assar um bolo. O tempo nesse caso é obrigatório a fim de obter um perfeito-saboroso resultado. Mas não se sabe o porquê, o mundo contemporâneo resolveu entrar em guerra com o tempo, o acelerando e o deixando líquido demais, quase casual. Assim, todas as coisas seguiram a maioria e o ciclo vicioso mantra de que “estamos sem tempo” pulula em noventa e nove porcento das bocas agitadas. Tudo parece ser para ontem. Ou atender as demandas de uma criança mimada que brinca por poucas horas com seu brinquedo novo. Logicamente, os filmes acompanharam o pensamento coletivo e infelizmente tampouco a Pixar, a perna filosófica-poética-psicanalista da Disney, conseguiu fugir do senso comum. Em sua mais recente animação, lançada na plataforma digital Disney Plus (aberto aos assinantes sem a opção premium que cobra aluguel), “Luca” soa mais como um projeto feito às pressas, para talvez cumprir um prazo.
A maestria do Pixar está nos detalhes. Nas sutilezas. Na forma como traduz as emoções, sem pieguices e clichês. Seus roteiros possuem um sarcasmo espirituoso. Um tom que atravessa a ficção e cria um espectro da realidade. Há vida cotidiana em fluxo contínuo. Mas em “Luca” nós recebemos o básico. O comum. O óbvio. Ainda que a mensagem da liberdade de ser o que se quiser ser, ir onde quiser e estar onde o coração pede, aqui, o roteiro escolhe gatilhos facilitadores para suas reviravoltas. Inevitavelmente, o público fará associação com o filme “Me Chame Pelo Seu Nome” (2017), de Luca Guadagnino (talvez o nome do diretor italiano tenha sido inspiração ao título da animação). Outra questão de “Luca” é se é uma obra gay ou não. Muito antes do filme ser lançado, a primeira coisa que se abordou na internet foi sobre “o novo filme gay da Pixar”. Não, pessoas. Desculpa informar, mas não é. E se fosse, este talvez devesse ser o último tópico da lista.
“Luca” é sobre amizade incondicional entre dois garotos (em que cada um vê no outro um modelo para amadurecer). Sobre o medo do preconceito. Sobre a aceitação da aparência. Sobre xenofobia. Sobre segregação de povos. Sobre inclusão. Sobre medo, sucesso e se defender da iminência de outra perda/abandono. Tudo isso por si só já é importante o suficiente para discutir. Mas o que realmente desloca o espectador da trama é seu excesso de “viajar na batatinha”. A história acontece em um vilarejo na Itália, com referências inclusive a “Princesa e o Plebeu”, de William Wyler, filme de 1953 que traz a questão de “desmascarar a masculinidade”. Entre corridas de bicicletas, valentões ricos, solidariedade cúmplice de outros deslocados, apoio de uma garota “pimentinha”, “Luca” conduz-se afobado quando não dá tempo de absorção (e nenhum silencio e/ou momento de reflexão). Peixes em ágil transmutação (como?), pais na Vila jogando crianças na água (referência explícita aos filmes de Federico Fellini), tudo faz com que tudo seja acelerado, mantendo sim o selo de qualidade da Pixar, contudo de maneira protocolar e sistemática. Dessa forma, nós não conseguimos nos conectar à trama. É novela demais. Um passatempo.
Dirigido pelo estreante em um longa metragem, Enrico Casarosa (de “La Luna”), “Luca” não é ruim, não mesmo, só não consegue se equalizar e chegar aos pés de um “Toy Story”, por exemplo, ou um “Divertidamente”. E ou um “Procurando Nemo”. Como já foi explicitado, o que realmente incomoda é seu roteiro frágil, sempre optando pelo gatilho mais facilitador. Enrico tinha tudo na mão. A metáfora da superfície e profundidade escondida. A diversidade em analogia. Animais marinhos e humanos. Personalidades múltiplas, entre idiossincrasias e a própria vida acontecendo, como o conhecimento do Universo e a necessidade de mudar de geografia para atingir o objetivo do querer. Ainda que dividido, o mais importante e relevante sempre vence. Aprender para dividir a verdade, afastando suposições e achismos. Talvez nas entrelinhas, a mensagem seja mesma sobre não acreditar em tudo o que se ouve. Que se deve verificar a informação. Se não, o dizer me dito vira mesmo uma fake news, retraindo ao que acreditou a aventura da própria existência e impedindo até mesmo o sonho da motocicleta.