Curta Paranagua 2024

Living

Dias Felizes

Por João Lanari Bo

Festival de Sundance 2022

Living

A verdade da burocracia é reproduzir-se (Hegel)

“Living (Viver)”, realizado em 2022 pelo sul-africano Oliver Hermanus, é um drama sobre um funcionário público britânico na Londres no pós-guerra, que carrega uma existência duramente abafada e restritiva, para ele e os que estão à sua volta. Ao saber que está sofrendo de uma doença terminal, tenta, em seus últimos meses, romper com a inércia e experimentar intensidades emocionais – no microcosmo da rotina burocrática de chefe de seção em um órgão municipal, isso significa tornar-se propositivo e atuante, em prol do social. No entorno pessoal, família e trabalho, significa romper com uma reserva amarga e autoritária e expor-se a fluidos interativos com os demais seres humanos. É mais do que um drama, portanto, é um melodrama, algo que combina sentimentalismo exagerado através do sofrimento com eventual redenção dos protagonistas. Via de regra, a trajetória da redenção é calibrada para levar a audiência às lágrimas. Todo esse arcabouço parece encaminhar o filme de Hermanus para a vala comum da mesmice medíocre, mas eis que um conjunto de referências salva a empreitada fílmica: trata-se de um remake do clássico “Viver”, dirigido por Akira Kurosawa em 1952. E mais: como em muitas das narrativas do diretor japonês, com personagens e situações inspirados nos grandes escritores russos, Dostoievski e Tolstói, resultando num notável exercício de antropofagia cultural.

Os críticos costumam identificar em “Viver”, de Kurosawa, relação com o fabuloso texto de Tolstói, A Morte de Ivan Ilitch: o leitor atento, entretanto, encontrará também na narrativa traços da psicologia do igualmente fabuloso Fiodor Dostoievski, vocalizada naquela compulsão de fala (e silêncios) dos personagens que corresponde a uma espécie de devassa interna. O esquema funcionou no Japão saído do desastre da Segunda Guerra, sobretudo pela presença do ator Takashi Shimura, uma das faces do cinema clássico japonês: e funcionou também no remake londrino, graças à adaptação do novelista Kazuo Ishiguro, oriundo de Nagasaki, que emigrou para a Inglaterra e acabou ganhando o prêmio Nobel de literatura, em 2017. Dentre outras contribuições de Ishiguro, cabe destacar o casting do veterano Bill Nighy, rosto extremamente conhecido, mas quase sempre em papéis secundários – que caiu como uma luva na construção do burocrata inflexível Mr. Williams, atormentado pela morte da esposa, autocontido até a raiz dos cabelos.

Seria uma pena morrer sem nunca ter vivido – é o lema de “Living”. Para começar, nosso burocrata chuta o balde e mergulha nos excessos do álcool e dos congraçamentos noturnos, após encontro casual com diletante local: seu assombro pelo reflexo que encontra no fundo de cada garrafa, pela memória afetiva que transborda dessa turbulência – pontuada por uma antiga canção escocesa – atua como purgação física e emotiva, provocando o impensável: Williams falta dois dias seguido ao trabalho. Uma amizade inesperada com uma ex-funcionária detona o turn around final, a motivação que vai dar sentido à sua existência: o que era mais um processo burocrático impunemente engavetado – pedido de um grupo de mães para transformar área degradada em um parquinho infantil – torna-se a alavanca existencial do chefe de seção. Mr. Williams joga todo o seu micropoder de funcionário sênior para quebrar a circularidade infinita dos funcionários que fogem de suas responsabilidades e paralisam as iniciativas de bem-estar social. O anteriormente ineficaz burocrata envolve-se pessoalmente no projeto, arriscando o pescoço, finalmente.

Outro acerto de “Living” foi situar os acontecimentos numa época paralela ao original japonês, início dos anos 1950, conferindo uma universalidade à trama. Os burocratas carreiristas da nossa era digital, malgrado as aparências que enganam, costumam repetir esses comportamentos – salvo as exceções de sempre, claro. No filme, com seus ternos bem cortados e chapéus-coco combinando, os funcionários públicos especialistas em movimentar papel comportam-se com a premissa de que arriscar o pescoço é a maneira mais certa de perder a cabeça – qualquer iniciativa fora da caixinha pode criar problemas e atrapalhar suas carreiras. É sempre melhor passar a bola para outro departamento, que por sua vez vai repassar para outro departamento, e assim por diante. O objetivo, quando o funcionário senta em cima do processo, é não causar dano. O interesse público, hélas, fica em segundo plano, indefinidamente.

Com a modéstia que o caracteriza, Bill Nighy definiu seu trabalho em “Living”:

Esse tipo de filme pode ser edificante quando você sai do cinema. A tragédia realmente traz esperança. Não entendo como isso funciona, mas funciona. Você apenas espera fazer um bom trabalho que possa nos levar a algo melhor.

3 Nota do Crítico 5 1

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