L.A.P.A – O Filme
A essência do transitório que fica
Por Fabricio Duque
A essência de um documentário, muito mais que contar uma história ao mundo da imagem, é traduzir uma sensação. Conectar o público ao tema abordado pela experiência vivenciada. Há quem acredite que este gênero é um produto de finalização mais fácil. Não, não é. Ledo engano, porque se necessita acima de tudo de uma construção. De fortalecer a base para a obra permanecer sólida. Sempre argumentei minha percepção de que não existem documentários, visto que tudo é ficção, até porque quando a luz de uma câmera é ligada, a própria condição humana transmuta a verdade do que se escuta em projeções de como a imagem-aparência se perpetuará nas telas grandes.
Só que para toda regra sempre há uma exceção. “L.A.P.A – O Filme” é um desses filmes que deslocam a vírgula. Que desconstroem a padronização da linha. Seus diretores Cavi Borges e Emílio Domingos, não satisfeitos em apenas documentar, adentraram na estrutura de um cinema direto e representativo, à margem underground, quase de garagem, convidando o espectador a imergir junto, a participar da organicidade da criação. Dessa forma, nós podemos potencializar nossa experiência de conhecer um universo diferente a que estamos acostumando. É uma forma de expandir a ideia. De sentir as dificuldades de se lutar por um sonho. Artistas do hip hop que batalham arduamente para colocar os “versos na rua”.
Seus realizadores, motivados pelos curtas-metragens “Minha Área” (2007), “A Palavra Que Me Leva Além” (2000), que deram origem ao longa-metragem “L.A.P.A – O Filme”, imprimem um estilo próprio, e, assim, verdadeiro, livre, não pretensioso, humano. Quase amador. De voz improvisada e intuitivamente potente. Cada história embasa o contexto do universo da música, entre incondicionais alegrias desmedidas (aquelas que rasgam o peito e transcendem a lógica do existir) e os incontáveis “nãos” recebidos.
É também sobre esperança e otimismo. Da crença absoluta do que querem, do que precisam e do que cantam. Que é “fazer música independente para viver o que é a música”. Que “amam tanto o que eu fazem, que esse amor vai ser possível”. É a “hora do recreio” deles. Diversão e trabalho em uma mesma frase. A Lapa é a conversão. O ponto de referência. Trinta quilômetros de Irajá. “O que é ser um morador padrão da lapa? É difícil saber”, questiona-se. E, costurando ambientações locais do “bairro transitório” com seus artistas convidados (que “se encontram para trocar uma ideia”), o longa-metragem nos apresenta afinidade e pessoalidade. “Na Lapa, fico mais cosmopolita”, sente-se.
“L.A.P.A – O Filme” é sobre a “liga dos MCs”. Aori, Marechal (sua música deu o nome deste filme), Marcelo D2 (os “puteiros” e sua história com o Skank, retratado na ficção “Legalize Já – Amizade Nunca Morre”, de Johnny Araújo e Gustavo Bonafé), Chapadão (“até porque MC João não rola”), Funkero (“maloqueiro no Rio de Janeiro”, que com a música “fortaleceu” e construiu o muro de sua casa e que foi a literatura de Monteiro Lobato e Narizinho que o salvou), BNegão, Black Alien (com a camisa do filme Scarface e que precisa lidar com a burocracia da indústria fonográfica), Iky (“revolucionários e reacionários, tudo depende da posição que se está”), Menor da Chapa, Sheep, Gil, Kelson. “Quem faz a Lapa viver é nóis”, diz-se. E “fazem rimas para trabalhar os neurônios a todo minuto”.
Cada um deles tem um diferencial. E todos são passionais em seus sonhos e travam uma “luta constante” para vencer., entre “sobreviver de música”, “viver de cachês” e “improvisar a vida”. Da linguagem TDK de falar ao contrário à utilização de Samples de MPB (como por exemplo, o popular classicismo de Suely, passando por Notorious Big e Edu Lobo). Da culpa dos videoclipes, que deturpam a realidade do hip hop. Da mãe que apoia o filho e não deixa “rolar discriminação” na família. Da batalha de versos em cúmplice e saudável “esculacho”. “O Rap explica o assunto social. É didático”.
Da liberdade da Festa Zueira ao julgamento moralista da Igreja Batista, que ajuda jovens dependentes químicos. É uma análise de unicidade comportamental em sociedade. Uma antropologia lapeira. Um música de “gueto” com um “tipo de periferia”. “L.A.P.A – O Filme” é uma imersão em um universo particular, vivo, pulsante e em movimento. Que nos mostra a força e a potência do tema, costurado em ritmo caseiro e urgência cadenciada. Em oportunidade e necessidade. É um documentário que eleva ao máximo a característica do gênero, que é a de traduzir com a mais pura sensibilidade, fazendo com que nós nos tornemos parte do que é apresentado e não apenas assistir um exemplar oportunista que explora o social como uma experiência de cobaias em um laboratório in loco. O filme é muito mais do que acontece na tela, é uma ode-homenagem ao Hip Hop e seus artistas sonhadores, letrados e versados, tudo por uma direção de união coletiva e de amizade produtiva. É a essência do transitório que fica.