Kobra Auto-Retrato
Quando a cidade, a arte e o povo se encontram
Por Fabricio Duque
Durante o Festival do Rio 2022
Antes de tudo, nós precisamos ser sinceros quanto aos documentários: muitos deles buscam uma forma narrativa já padronizada e clássica de entrevistas em que seus depoentes olham diretamente para a câmera. Ainda que isso cumpra o propósito contextual de informar e/ou argumentar e/ou artifício de captação emocional, suas características verbais essenciais, nós espectadores sentimos falta de algo a mais. Algo que nos surpreenda, visto que a existência genuína de um documentário é a liberdade. De se poder ir a qualquer lugar, de se tomar qualquer caminho. E de ressignificar a rota enquanto o próprio percurso, porque toda experiência acontece no processo de realização e nunca se finaliza, nem mesmo quando acaba a duração, visto que as personagens continuarão a seguir suas vidas pessoais. É por isso que quando um documentário sai da caixinha e explora o mundo visual, então nós somos completamente abduzidos por ele e seus atores sociais.
Exibido na Mostra de Cinema de São Paulo e no Festival do Rio 2022, “Kobra Auto-Retrato”, de Lina Chamie, não só apresenta a obra e vida de Kobra, um dos artistas de rua mais famosos do mundo, desde o grafite ilegal nas ruas de São Paulo até pintar grandes murais em mais de 30 países, mas sim acima de tudo busca criar no espectador-público uma experiência imersiva, estética, onírica e de poesia coloquial, de organicidade hip hop (a trilha de São Paulo), de vivência direta com o externo, com a cidade, esta que aqui divide protagonismo com o verdadeiro personagem homenageado, que aceita expor sua insônia, suas dificuldades, suas alegrias, suas quedas e seus sucessos. Aqui, o longa-metragem narra o movimento, em que ilustra e resume o que se vê. Imprime a metafísica sensorial do barulho das ondas. Em que o “quadro” é o celular, em que “cada frame é uma pintura e interferências de cor na imagem”, na batida da música.
“Kobra Auto-Retrato” é vanguardista em seu olhar, entre um que de David Lynch, por ver “coisas estranhas”. Há também uma percepção honesta sobre comportamentos e idiossincrasias dos paulistanos e paulistas. O filme não tem restrições em abordar essas reações, uma tom cognitivo de uma sentimentalismo mais sensível que alimenta micro picuinhas subjetivas e pessoais (parecem estar sempre em um vitimismo defensivo autoimune). E é assim que a maestria do documentário acontece, traduzindo toda esse genialidade neurótica, frágil, fluída, abstrata, egoísta, impulsiva, urgente, ingênua, entusiasta, inflamável, teimosa, sempre revoltada e que não pensa muito antes de tomar decisões, que só os verdadeiros artistas trazem em suas sinapses e em suas criações, transgressoras, e até mesmo de arrogância mascarada de pseudo humildade, muito mesmo antes do reconhecimento profissional. De não querer regras. De normalizar o improviso. Mas que de vez em quando “evolui com a cobrança dos outros”. Isso é muito mais que uma simples expressão. Como foi dito, a cidade é base, material bruto e projeção. E a câmera de Lina Chamie complementa tudo ao passear pelos espaços, por voar com seus drones (em incríveis tomadas aéreas) e por incorporar os sons e ruídos conectados e vazados de todo esse ambiente externo.
“Kobra Auto-Retrato” quer mesmo o extra do detrás. Os bastidores da filmagem. A metalinguagem da criação do momento, como as rachaduras na parede no meio da arte. Sim, o filme oferta ao espectador retratos artísticas. De vida acontecendo. De um bairro que transcende a geografia do Brasil, agregando Nova Iorque, por exemplo, como extensão gestual e simbólica do próprio macro territorial, entre montanhas-russa e escolas revisitadas. Quando Lina inventa a ideia, e Eduardo Kobra aceita “doar” toda essa exposição de sua vida, então nós recebemos uma imagética (e realista) viagem existencial, sobre um artista de rua que carimbou uma cidade inteira com suas “pixações” muralistas, e, sobre uma cidade que se transformou e se modernizou com essas pinturas. Uma união co-dependente, inicialmente conflituosa, mas agora com uma relação indissociável com suas famosas obras-de-arte nas paredes, integrando todos pelo olhar, pela cor estética, pelo traço já característico, pela sensação de pertencimento, pela esperança da arte como popular, inclusiva e que gera um permanente e gratuito acesso cultural.
E que em 1995 funda o Estúdio Kobra, especializado em painéis artísticos, que conta com uma equipe de doze artistas. “Kobra Auto-Retrato” é isso tudo e muito mais. “Essas cores acabaram se tornando seu principal cartão de visitas ao redor do mundo, o estilo marcante de sua obra. E, em maior ou menor grau, passaram a aparecer em obras das mais diversas fases de sua carreira”, conclui um dos textos do site oficial de Kobra.
1 Comentário para "Kobra Auto-Retrato"
Fantásticos este artista,tem muitos detalhes que são familiares em minha vida:eu amo desenhar tudo , rabiscar meus cadernos ,criar, copiar etc…. Adoro as cores ,mas sou gente e quero ser inteligente e poder voar, acreditando em conseguir me expor humildemente.