Curta Paranagua 2024

Jeanne Dielman

O melhor filme de todos os tempos!

Por João Lanari Bo

Festival de Cannes 1975

Jeanne Dielman

Jeanne Dielman”, de Chantal Akerman – no título original, “Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles” – entrou de sola no panteão cinematográfico ao obter o primeiro lugar na famosa enquete da revista inglesa “Sight and Sound”, rotulada de (sem modéstia) os melhores filmes de todos os tempos! Realizada de 10 em 10 anos desde 1952, a lista evoluiu com o tempo, ainda que lentamente: “Cidadão Kane” (1941), de Orson Welles, dominou a lista por 40 anos, de 1962 a 2002; em 2012, “Um corpo que cai” (1958), de Alfred Hitchcock, foi o vencedor. Na primeira votação, em 1952, “Ladrões de Bicicleta”, de Vittorio De Sica (1948), havia levado o laurel. Em 2012, votaram 846 pessoas de 73 países que escolheram 250 filmes, com apenas um latino-americano entre eles: “Memórias do subdesenvolvimento” (1968), do cubano Tomas Gutierrez Alea, em 174º lugar – óbvio que se trata de uma lista eurocêntrica, com concessões a alguns asiáticos e ponto final.

Na presente edição de 2022, a mais ambiciosa até o momento, votaram mais de 1.600 pessoas entre críticos, acadêmicos, distribuidores, escritores, curadores, arquivistas e programadores, quase o dobro do número de participantes em 2012 – como informa orgulhosamente o site da revista. Os latino-americanos seguem pateticamente ultra minoritários – além de “Memórias do subdesenvolvimento”, entraram o argentino “O Pântano” (2001), de Lucrécia Martel, em 140º lugar; “De cierta manera” (1977), da cubana Sara Gómez, em 209º; e os brasileiros “Limite” (1931), de Mário Peixoto, em 216º, e “Cabra Marcado para Morrer”, de Eduardo Coutinho, em 223. Isso mesmo, apenas cinco filmes, em 264.

Tudo isso é muito maçante, listas são listas, a qualquer momento alguém pode inventar uma. O que fica claro é que a combalida América Latina não existe no mapa mental dos cinéfilos profissionais do hemisfério norte. A lista de 2022, entretanto, trouxe uma novidade: pela primeira vez uma mulher, Chantal Akerman, foi a agraciada. E mais: com um filme a um só tempo experimental em sua linguagem, e propositivo em seu projeto político. “Jeanne Dielman”, que foi o 36º escolhido em 2012, deu um salto e abocanhou o prêmio em 2022. Em 3 horas e 22 minutos, a obra-prima de Chantal é descrita com acurácia pela pesquisadora brasileira Yvone Margulies:

Estendendo a rotina doméstica diária de seu personagem-título em tomadas longas e rígidas, o filme de Akerman simultaneamente permite que os espectadores experimentem a materialidade do cinema, sua duração literal e o significado concreto do trabalho de uma mulher. Assistimos, por três horas e vinte e dois minutos, enquanto Jeanne cozinha, toma banho, janta com seu filho adolescente, faz compras e procura um botão perdido. Cada gesto e som fica impresso em nossa mente e, à medida que somos embalados por ritmos familiares e comportamentos esperados, nos tornamos cúmplices do desejo de ordem de Jeanne.

Margulies é autora de um livro imprescindível sobre a cineasta, Nada acontece: o cotidiano hiper-realista de Chantal Akerman. Segundo ela, quando lançado, em 1975 – a diretora tinha 25 anos – “Jeanne Dielman” estava em plena sintonia com o movimento femininista europeu. “Descascando batatas” era um dos badalados artigos da revista Les temps modernes, editada por Simone de Beauvoir, e na Bélgica os direitos trabalhistas das prostitutas eram assunto de debates acalorados. O alinhamento rigoroso da política sexual/gênero com uma inédita economia formal da linguagem – mostrando extensamente o ato de cozinhar, mas escondendo o ato sexual – revelou-se uma alternativa incrivelmente eficaz comparada a documentários políticos bem-intencionados, mas convencionais.

O filme obriga o espectador ao exercício de uma nova sensibilidade fenomenológica, privilegiando exaustivamente a observação e o peso do tempo no trabalho e na rotina de uma personagem classe média residente em Bruxelas, 23 quai du Commerce, 1080. Delphine Seyrig, a fulgurante atriz de “O Ano Passado em Marienbad”, cozinha batatas, arruma o cabelo, fala com o filho, prostitui-se – tudo isso retratado em série, três dias na vida de Jeanne. Ordem e limpeza são sua obsessão: sua aparência elegante e contida não sugere a via da prostituição – de alguma maneira, helás, a elegância parece esconder algo na vida dessa viúva. O drama vira detalhe, e o concreto, abstrato.

Chantal menciona em sua formação cineastas francamente experimentais, como o canadense Michael Snow – em especial, “La région centrale”, com 3 horas e 12 minutos, que, em suas palavras, abriu minha mente para a relação entre o filme e seu corpo, o tempo como a coisa mais importante no filme. Outra influência citada por ela é “O Demônio das Onze Horas” (1965), o esplêndido “Pierrot le Fou” de Jean-Luc Godard, em que o herói se explode, privado pela narrativa de qualquer outra opção – se a vida é uma narrativa, esta pode ser uma opção.

Falecida prematuramente em 2015, Chantal Akerman deixou uma obra excepcional. O ator Sami Frey gravou os bastidores das filmagens de “Jeanne Dielman”, outro documento inestimável, disponível na internet.

5 Nota do Crítico 5 1

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