Ithaka: A Luta de Assange
Jornalismo não é crime
Por Pedro Sales
Julian Assange, jornalista australiano e fundador da página Wikileaks, está preso na Inglaterra desde 2019. Antes disso, passou sete anos, 2012 a 2019, em asilo político na Embaixada do Equador, em Londres. A prisão do ativista foi motivada sobretudo pelas alegações de espionagem quando, em 2010, publicou detalhes das atividades dos Estados Unidos nas guerras do Iraque e Afeganistão, incluindo informações sobre tortura e assassinato de civis. Longe da contemporaneidade desses fatos, segundo a literatura de Homero em “A Odisseia”, Ítaca era a ilha onde Ulisses foi rei. O herói se ausentou por 10 anos na Guerra de Troia e mais outros dez, após aventuras. No entanto, durante todo esse tempo, Penélope, sua esposa, esteve esperando por ele. No documentário “Ithaka: A Luta de Assange“, o cineasta Ben Lawrence constrói um paralelo simbólico entre Julian e Ulisses. Ainda que o jornalista esteja fora de sua terra natal, encarcerado, muitos esperam por ele, como seu pai, noiva, filhos e apoiadores.
Em primeiro lugar, o filme trata logo de estabelecer que Julian Assange não é o personagem principal, pelo menos não diretamente. Toda a trama se desenvolve, naturalmente, em torno dele, contudo o foco da direção de Lawrence é demonstrar a resiliência da rede de apoio. O pai John Shipton e a noiva Stella Morris são as principais pessoas na luta pela liberdade do fundador do Wikileaks. A dupla, além de servir como porta-voz de Assange, ainda é o elo que o mantém informado acerca do mundo exterior. Portanto, o documentário, ao focar no pai e na noiva, propõe intimismo na trajetória de sacrifício em viver por uma causa. A câmera de Lawrence penetra, então, as casas, a rotina, os trajetos de carro. Nada escapa. Apesar disso, o documentário oscila entre tons. Não é puramente observacional, como poderia imaginar à primeira vista com a proximidade de John e Stella. O cineasta também opta por inserir as tradicionais entrevistas, as quais muitas vezes servem como off para imagens do cotidiano de pai e noiva.
A questão central de “Ithaka: A Luta de Assange” é o julgamento da extradição de Julian. Caso o fundador do Wikileaks fosse extraditado, isso significaria prisão perpétua nos Estados Unidos. O documentário promove, dessa forma, uma certa urgência com as datas, como uma contagem regressiva. Afinal, trata-se do destino de um homem, entre a morte e a liberdade. Por mais que alguns o pintem como “um herói de nosso tempo”, o filme e a própria Stella fazem questão de afirmar que Assange ainda é um homem, um ser humano que está sofrendo, principalmente psicologicamente. Ou seja, esvazia a controvérsia em torno dele e promove uma humanização dessa figura. As torturas sofridas por ele e todo o processo da espionagem da CIA quando ele ainda vivia na embaixada do Equador são expostos, assim como a insegurança de Stella e o medo de que lhe inflijam dor como um “aviso” para Julian. A noiva, então, lida com o ativismo e também com a criação dos filhos, que crescem longe do pai. O núcleo familiar de ativismo também é bastante engrandecido pela figura do pai de Assange.
John Shipton se nega a falar sobre a infância do filho. Ele não a viveu, deixou o garoto quando ele tinha 3 anos e só voltou a vê-lo quando este já era um homem de 20. Ben Lawrence decide expor esses pequenos embates com John, um homem estoico, extremamente realista e que, mesmo com um passado aparentemente conflituoso com o filho, hoje se dedica à soltura. Ele não gosta de entrevistas e tenta se desviar quando pode dos meios de comunicação em massa, ainda que falar com a imprensa seja inegavelmente necessário para a visibilidade da defesa do filho. Para ele, lutar por Julian é, em certa medida, abdicar de si mesmo. Realizar um périplo europeu, ir de Berlim a Paris para protestos, entrevistas e encontros com autoridades, é dedicar o fim da vida a uma causa. A filha mais nova de John, de seis anos de idade, mora na Austrália e pouco o vê. É um tempo que não volta, como ele mesmo pontua em determinado momento.
Para além da abordagem mais pessoal devido ao fator família, “Ithaka: A Luta de Assange” se posiciona politicamente acerca do julgamento de Assange com óticas mais distantes e “imparciais”, como a de um membro da ONU e, claro, da mídia por meio de trechos de noticiários. Neste último ponto, a defesa pela liberdade de Julian Assange também é uma defesa da imprensa, é afirmar que “jornalismo não é crime”. Expor crimes de guerra jamais poderia ser equiparável aos próprios crimes em si. Assim, a prisão significa restrição da liberdade de imprensa, um direito que, contraditoriamente, é assegurado pela Primeira Emenda da Constituição dos EUA, uma cláusula pétrea, irrevogável. Mas como legalmente tudo encontra seu jeitinho, Assange foi autuado por uma lei chamada Lei de Espionagem. De qualquer forma, ele não foi o primeiro e nem será o último a expor segredos de Estado. Nos anos 70, houve o vazamento dos Pentagon Papers acerca da Guerra do Vietnã, mais recentemente Snowden também foi centro de discussões sobre espionagem, mas não sofreu metade de Assange.
Ben Lawrence, portanto, desenvolve em “Ithaka: A Luta de Assange” um retrato do jornalista e ativista pelos olhos daqueles que são o refúgio dele. O intimismo na rotina de pai e noiva transparecem os desafios diários que enfrentam em uma vida dedicada quase exclusivamente à defesa de Assange. Os melhores momentos surgem quando a sinceridade de John lida com muita lucidez frente à dura realidade. Apesar de a proximidade familiar concentrar toda a potência do discurso, a direção de Lawrence muitas vezes é repetitiva, as novas conversas com Julian pelo telefone não acrescentam novidades ao caso, por exemplo, apenas alimentam a sensação de rotina e uma certa impotência em tirá-lo da prisão. Outro desafio é como dispersar as informações, as quais vem por intertítulos em um ritmo muitas vezes entrecortado. Ainda assim, o documentário é bastante competente no seu papel inicial: mostrar como John e Stella lutam por Assange e, consequentemente, legitimar a liberdade do principal preso político dos dias de hoje.
1 Comentário para "Ithaka: A Luta de Assange"
A crítica sobre o filme está tão sensacional e tão bem elaborada , que despertou a minha curiosidade. Vou assistir!
Parabéns pela crítica!