Curta Paranagua 2024

Inimigos da Razão

Acredite, se quiser

Por João Lanari Bo

Youtube

Inimigos da Razão

Em 2007, o biólogo evolucionista Richard Dawkins ancorou um documentário de 90 minutos, coproduzido pelo Channel 4 britânico, com um propósito claro e objetivo: azucrinar os “Inimigos da Razão”, expor “aquelas áreas de crença que existem sem comprovação científica, mas conseguem manter as pessoas sob seu feitiço”, incluindo mediunidade, astrologia, homeopatia e psicocinesia – esta última uma categoria que os dicionários definem como “influência do espírito sobre a matéria, sem intervenção da força física”. Ou seja, algo que abrange um vasto campo de aplicações na era “new age” que caracteriza o início do atual milênio. Dawkins dispara sua metralhadora giratória com suavidade, colocando seu próprio corpo, o de um cientista renomado, na linha do experimento, oferecendo-se para receber vibrações e energias – mas pronto a detonar com aquele ar de filósofo cético-empirista qualquer truque ou artimanha que vise seduzir nossos espíritos desprevenidos. O documentário, apropriadamente intitulado “Inimigos da Razão”, está disponível com legendas no Youtube e foi dividido em duas partes: “Escravos da Superstição” e “O Irracional Sistema de Saúde”.

Logo de cara, encontrando-se com o astrólogo Spencer, um sujeito bem vestido e confiante no seu “business”, o cientista-repórter trava o seguinte diálogo:

Dawkins: Poderíamos conceber um pequeno experimento em que pegamos suas previsões e, em seguida, apresentamos algumas delas diretamente, algumas delas de forma aleatória, fazendo previsões para Virgem, Peixes etc. e depois perguntamos às pessoas o quão precisas elas (as previsões) eram?

Spencer: Sim, mas isso seria uma coisa perversa de se fazer, não é?

Dawkins: Seria sim, mas não é, não seria um bom teste?

Spencer: Um teste de quê?

Dawkins: Bem, quão preciso você é?

Spencer: Acho que sua intenção é travessura e acho que o que você recebe de volta é travessura.

Dawkins: Ok, bem, minha intenção não seria travessura, minha intenção seria um teste experimental.

Sim, é uma travessura…mas é sobretudo um método clássico de teste científico, usado em escalas variáveis em diversas áreas de interesse direto da humanidade, agora combalida pela pior pandemia da história moderna. Com a expansão aparentemente irrefreável do Covid-19, estamos todos à mercê da aplicação diária de métodos científicos – testes e mais testes, fases, placebos, amostragens aleatórias – imprescindíveis para a produção de vacinas, afinal a razão para nossa sobrevivência. A fé na razão, a despeito dos aloprados que circulam pelo éter da existência terrena, parece ser nossa tábua de salvação: e o lugar da razão é exatamente o lugar da ciência, nos laboratórios, nas universidades e até nas agências regulatórias, no caso brasileiro, a ANVISA. A iconoclastia mal humorada de Dawkins – ele é também um ateu militante, autor do best-seller “Deus, um delírio”, título autoexplicativo – tem o saudável mérito de delimitar com clareza este lugar ocupado pela razão e pela ciência, cada vez mais sob ataque no mundo pós-internet de ruídos e fake news que vivemos.

E qual é a linguagem empregada para veicular essa cruzada pela razão? A especificidade da escola inglesa de documentários tem uma proeminência especial na história do cinema – seu mais ilustre representante, John Grierson, idealizou seus filmes como um “tratamento criativo da atualidade”, a fim de iluminar o cidadão comum para discutir e opinar sobre questões complexas da sociedade moderna. Em 1926, Grierson inventou o termo “documentário” para designar o novo gênero cinematográfico: na década de 30 engatou uma produção intensa, pensada como mecanismo de reforma social, educação e mesmo elevação espiritual. Nosso Alberto Cavalcanti dirigiu o fabuloso “Coal Face” em 1935, produzido por Grierson (por alguma razão Cavalcanti não foi creditado nos letreiros). Essa filosofia de produção transferiu-se para a televisão pública, BBC e Channel 4 – um conceito de televisão praticamente desconhecido no Brasil. Foi nessa tradição que “Inimigos da Razão” foi concebido: um projeto de esclarecimento.

Dentre os alvos de Dawkins, destaca-se a chamada “medicina alternativa”, amplo conjunto de práticas que não passam, segundo ele, pelo mesmo rigor estatístico que os tratamentos científicos –  que se baseiam em estudos duplo-cegos controlados – passam. Duplos-cegos: ensaios clínicos onde nem o examinado (objeto de estudo) nem o examinador sabem o que está sendo utilizado como variável em um dado momento. E não passam mesmo: até a homeopatia, a despeito das pessoas decentes e compassivas que a praticam, não escapa; nenhum tipo de tratamento homeopático seria aprovado em testes conduzidos com rigor científico. Mas, a ciência é frágil, derrubar um teste científico pode estimular os inimigos da razão: Dawkins lembra o caso da vacina MMR contra sarampo, caxumba e rubéola. Em 1998, artigo publicado na revista The Lancet atribuiu casos de autismo à administração da vacina.  Vários estudos subsequentes não conseguiram mostrar qualquer associação entre a vacina e o autismo: pelo contrário, foi revelado que o autor do artigo tinha recebido financiamento de litigantes contra fabricantes de vacinas e que não havia informado sobre seu conflito de interesses. O  estrago, entretanto, já estava feito: a repercussão na imprensa sensacionalista provocou um boicote generalizado e 1/5 das crianças britânicas não foram imunizadas contra sarampo, caxumba e rubéola. Qualquer semelhança com situações contemporâneas não é mera coincidência.

O filósofo David Hume, a matriz da razão cética que anima a concepção de “Inimigos da Razão”, escreveu lá pelo final do século 18:

Nenhum depoimento é suficiente para estabelecer um milagre, a menos que o depoimento seja de tal natureza que sua falsidade seria mais milagrosa que o fato que ele pretende estabelecer“.

A asserção de Hume é um tipo de teste para checar a veracidade dos milagres que volta e meia se nos aparecem. Algo que poderia ser equiparado ao que Jack Palance, o inigualável âncora da série mais cética da TV, dizia: acredite, se quiser.

4 Nota do Crítico 5 1

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