Curta Paranagua 2024

Impermanência

Corpo que invoca dança e teatro

Por Pedro Sales

Mostra Cavideo 26 anos

Impermanência

“Dance, dance… Senão estamos perdidos” – Pina Bausch

Os limites que separam a dança do teatro se tornaram ainda mais tênues com o advento da dança contemporânea. A coreógrafa Pina Bausch, um dos maiores expoentes do estilo, revolucionou a arte ao popularizar a Dança-Teatro (Tanztheater, no original em alemão). Para a artista, as coreografias se libertaram das amarras rigorosas do balé, promovendo, assim, livre expressão corporal no movimento dos dançarinos. Os espaços, o palco em si, também se tornaram ambientes de interação com a performance dos dançarinos. O legado de Pina, portanto, é basilar para a dança contemporânea, e sua influência continua visível na arte, inspirando até documentários. Em “Impermanência”, o coreógrafo, artista plástico e performer Márcio Cunha explora seus espetáculos nos quais a expressividade corporal é teatro e também dança. Em resumo, arte. A diferença dessa “dança-teatro” é o aspecto solitário, sem outros bailarinos. Na estrutura do longa, o diretor Guto Neto preserva esse aspecto quando opta por intercalar entrevistas com filmagens das sete performances do artista.

Um corpo se debate no chão, sujo e nu. Uma apresentação que certamente causaria ojeriza nos mais conservadores no que tange à arte e à liberdade dos corpos. Márcio Cunha promove uma entrega física bastante crua. Em certo momento, o coreógrafo até reclama das dores e explica a recusa em se medicar para “trabalhar apenas com o que tem”. Este primeiro espetáculo, chamado “Céu de Basquiat”, busca incorporar elementos da arte visual do artista nova iorquino e traduzi-la em movimento, em dança, em performance. Além da influência de Basquiat, artistas como Frida Kahlo e Bispo do Rosário também inspiraram outros espetáculos de Márcio, “Frida-me” e “Rosário”, respectivamente. Embora “Impermanência” consiga estabelecer seu personagem como uma figura multifacetada, em constante mudança ao longo de suas obras – inclusive física com diferentes cortes de cabelo -, o discurso parte da mesma solidão de suas performances, apenas o artista fala. Não existe opinião externa, ou mesmo uma percepção do público. Nisso, Guto Neto perde uma excelente oportunidade de analisar o que Márcio faz que atrai as pessoas pela visão delas mesmas. Por exemplo, o público ser formado por idosas é no mínimo curioso, sobretudo no condicionamento que temos de pensar nos mais velhos como tradicionalistas. Mas o longa deixa isso passar.

“Impermanência” deixa claro, desde os primeiros minutos, o caráter experimental da obra de Márcio Cunha. As performances do artista são inegavelmente expressivas, o corpo é moldado como argila, arremessado e entregue à arte. Isso passa também pelo espaço cênico e pela interação do dançarino com os objetos no palco. É uma performance-instalação, uma experiência multissensorial e multiartística. Artes cênicas, dança, artes visuais e música unidas em prol de um espetáculo. O tom do filme, no entanto, é bastante derivativo. Guto Neto se perde entre uma abordagem mais tradicional e experimental e, no fim das contas, não se encontra em nenhum dos dois. O aspecto mais clássico de documentário se materializa nas entrevistas, que se tornam excessivas. Existe, então, um didatismo autoexplicativo muito perceptível, inclusive em uma cena que o artista conta suas obras em uma  ligação telefônica com um interlocutor jamais citado – e bem provavelmente inexistente. Ninguém melhor que o próprio artista para explicar a obra, certo? Porém, ao mesmo tempo em que ele esclarece as intenções artísticas, o viés interpretativo para o espectador é esvaziado. Essa irregularidade entre o didatismo da entrevista com o cinema direto que o cineasta constrói, principalmente ao filmar os ensaios e preparações para os espetáculos, prejudica bastante a rodagem do longa.

Por outro lado, quando Guto Neto se propõe a materializar na forma fílmica o experimentalismo de seu personagem, a obra adquire uma potência dramática maior – e mais ajustada à produção de Márcio Cunha. “Impermanência” só demora um pouco a abraçá-lo. O plano inicial dá alguns indícios com fusões e cores que se tornam cada vez mais vibrantes, mas ele logo se perde nesse limbo. Quando o longa se dedica ao espetáculo “Rosário”, em contrapartida, o experimental toma conta. Na Colônia Juliano Moreira, instituição psiquiátrica que o Bispo do Rosário esteve, Márcio incorpora as dores do lugar ao lado de Arlindo, um antigo paciente. A montagem se fragmenta e os sons se tornam indistinguíveis, com apenas a constância dos sinos e dos gritos, representando cinematograficamente o tormento que os pacientes vivenciaram naquele espaço. O vídeo, filmado em 2018, associa-se ao espetáculo e é projetado no palco e também no corpo que, além de invocar dança e teatro, torna-se tela.

A dança, o teatro e outras manifestações artísticas lidam diretamente com a temporalidade, são feitas para serem vistas no presente, a efemeridade do momento é o fim em si. Márcio Cunha até diz: “Meu espetáculo não é para ser visto no vídeo, é para ser visto ali na hora, para ser sentido”. A frase é contraditória tendo em vista que estará em um filme, uma gravação. Apesar disso, “Impermanência” faz justiça às performances e consegue explorar a potência corporal do artista com a visão aproximada das lentes, que não é nem de longe a mesma do público – da mesma forma que são experiências diferentes. Guto Neto consegue eternizar o efêmero e cristalizar a entrega de um artista dedicado e talentoso na sua proposta experimental da dança. O tom irregular, no entanto, é um elemento que acomete a obra, a torna lânguida e obscurece o que ela poderia ter. A indecisão entre tradicional e experimental contribui para isso, assim como o fato de o diretor concentrar todas as etapas da produção. É evidente, pelo menos para mim, que os momentos de maior expressividade se dão justamente quando o cineasta se arrisca mais e compartilha da mesma “coragem” de seu personagem.

2 Nota do Crítico 5 1

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