Histórias do Cinema com Susana Schild

HISTÓRIAS DO CINEMA EM QUESTÃO: AS INDÚSTRIAS DE SONHOS, no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro, é uma série de oito palestras que traçam um breve panorama dos cinemas brasileiro e americano, especialmente em algumas de suas manifestações mais representativas.

O evento quinzenal, toda terça-feira, de 23 de fevereiro e 01 de junho de 2010, que tem entrada gratuita, com a retirada de senhas uma hora antes, estimula a memória do cinema brasileiro e internacional pelos olhos de convidados que fizeram fama no meio cinematográfico.

Saroldi inicia o encontro dizendo “Eu sou aquele mediador que não apareceu nas três últimas paletras. Saúde menor (acidentara-se). Vera Cruz era um pólo cinematográfico com sotaque europeu a apresenta a convidada.

Susana Schild chegou quase menina no Caderno B, do Jornal do Brasil. Especializou-se no cinema. Jornalista, crítica de cinema, roteirista. Trabalhou no Jornal do Brasil (1974-2003), foi colaboradora de O Estado de São Paulo (1995-2003) e correspondente da publicação internacional Moving Pictures (1995-2002). Dirigiu a Cinemateca do Museu de Arte Moderna (RJ) (1993-1997). Foi júri de festivais de cinema no Brasil (Gramado, Brasília, Natal) e no exterior (Montreal, Palm Springs, Plovdiv-Bulgária). Autora do livro “Coração Iluminado: A História de um filme de Hector Babenco”.

De 2004 a 2006 foi coordenadora de festivais internacionais do Grupo Novo de Cinema e TV, empresa voltada para a promoção e distribuição do cinema brasileiro no exterior. Roteirista do filme “Depois Daquele Baile”, dirigido por Roberto Bomtempo, lançado em 2006 e da adaptação de Mão na Luva, baseado em peça de Oduvaldo Vianna Filho, com filmagem prevista para 2008, com direção de Roberto Bomtempo. Para o teatro, adaptou “Um Sopro de Vida”, baseada em texto de Clarice Lispector.

Susana Schild

Após o fim da Segunda Guerra Mundial e da ditadura do Estado Novo, em 1945, São Paulo vive um momento de efervescência cultural. Revistas de divulgação artística, conferências, seminários e exposições agitam a vida paulista. No final dos anos 40, são inaugurados o Museu de Arte Moderna e o MASP – Museu de Arte de São Paulo. Na mesma época, Franco Zampari, empresário de origem italiana, monta uma companhia teatral de alto nível, o TBC – Teatro Brasileiro de Comédia. Cresce o interesse pelo cinema. Intelectuais fundam cineclubes e movimentam grupos de debates.

“São Paulo sempre foi modesta. Unir o crescimento econômico ao cultural. A ambição era clara: transformar essa cidade em um pólo cultural nos melhores moldes do estrangeiro. Um lugar que olhava para frente, para o futuro. Ter a industria ligada a cultura, por mecenas Francisco Matarazzo Sobrinho e Franco Zampari. São Paulo precisava de cinemas de qualidade. Havia varias historias de bastidores. Uma delas contava que a idéia surgiu ao ver filas enormes para assistir “chanchadas horrorosas”, como eles diziam na época. O objetivo era trazer um cinema de qualidade, fazer filmes bons como no exterior”

A Companhia Cinematográfica Vera Cruz foi o mais importante estúdio cinematográfico brasileiro da década de 50, tinha sido fundado em São Bernardo do Campo pelo produtor italiano Franco Zampari e pelo industrial Francisco Matarazzo Sobrinho em 4 de novembro de 1949.

“Nem parece brasileiro, parece cinema de qualidade internacional”, dizia quando alguém tenta elogiar o produto nacional. As qualidades intrínsecas estrangeiras diferenciavam o nacional, com um objetivo preciso. Fazer filmes nacionais que atingissem o mercado internacional. Hoje o produto é globalizado. Havia três etapas a ser definidas: saber o que quer, o que não quer e conseguir fazer o que quer”

“Eles queriam um cinema diferente das Chanchadas, que eram, na visão deles, populares, improvisadas, toscos, artesanais para um consumo local e menosprezadas pelos paulistas. A pretensão era ser como Hollywood. Construir uma cidade cinema e chamar profissionais do exterior. Matazzaro e Zampari resolveram esquecer o estilo anterior de cinema e começar do zero. Uma fase sempre faz questão de esquecer a anterior no Brasil.

Eles chamaram Alberto Cavalcanti para ser produtor geral da Vera Cruz, por morar na Europa, porém tinha mais de 30 anos que ele não pisava no Brasil. Na equipe havia várias nacionalidades. Há quem diga que são mais de 25 tipos diferentes e só alguns brasileiros (a platéia ri). Eles convocaram a melhor equipe técnica. Compraram os melhores equipamentos disponíveis no mercado do planeta estavam lá, sem um tostão do Estado. Os técnicos europeus, por causa da guerra lá fora, viram a oportunidade perfeita virem ao Brasil para trabalhar ganhando muito bem. Vieram dezenas de técnicos. Mas os atores deveriam ser brasileiros. Era um intercambio. Eles buscavam dotar o nosso país com uma industria cinematográfica de qualidade. Como disse: para fazer um filme vamos esquecer o passado. Nada combinava menos que a improvisação das Chanchadas. A ambição era realizar quatro filmes por ano. Mas quem chamar? Quem dirige teatro, dirige cinema. Quem trabalha no teatro, trabalha no cinema. Adolfo Celi nunca tinha dirigido. A base da Vera Cruz era estrangeira. O primeira escalão não entendia de cinema, o segundo de Brasil. Foram 18 longas em um período de cinco anos.

O primeiro filme. “Caiçara”. A primeira atriz, Eliane Lage, de cinema nunca tinha trabalhado com cinema. Tinha um diretor que não possuía experiência e uma atriz que não queria ser atriz. Todo mundo vinha do teatro. Era uma ousadia, ingenuidade, mas foi a marca. Acabaram pagando com a língua e seguiam improvisando. Todo filmado em Ilhabela, litoral de São Paulo, para onde foram deslocados o elenco, a equipe técnica e os pesados equipamentos de filmagem. Não havia luz elétrica na Ilha. Precisaram de geradores enormes. Eram cinqüenta técnicos. Havia improvisação no outro plano. Só que custava muito mais caro. Foi o cartão de visitas. A historia era uma moça leprosa que precisava ser resgatada. Eliane Laje casou-se com o produtor, foi a grande estrela da Vera Cruz. Pensa-se na complexidade das cenas. Havia a contemplação da imagem. “Mulher bonita não tem sorte, tem mau olhado”, dizia em um filme. Era uma integração a natureza, meio “A terra treme”, de Luchino Visconti. As imagens, enquadramentos, planos, ritmos e cortes eram de um requinte visual, um salto técnico de qualidade. Filmar em mar é complicado, uma delas foi filmada 40 vezes. Os atores locais eram coadjuvantes da cena, espectadores do que estava no centro da ação. Nelson Pereira dos Santos disse “O povo era observador”. Atores estáticos lembrando um teatro grego e a marcação dos atores. Recebeu vários prêmios nacionais. Participou do Festival de Cannes. Foi a consagração.

Outro marco de 1951 foi “Tico Tico no Fubá”, baseado na vida de Zequinha de Abreu, um musico brasileiro, interiorano, almejando o sucesso internacional. A sua vida foi convencional, romanceada com filhos que começavam todos com a letra D. Fernando de Barros era o produtor geral na época. Com Alsemo Duarte, Tonia Carreiro e Marisa Prado, a segunda estrela da Vera Cruz. Um circo ficou a disposição por seis meses. Havia simetria nas imagens. A câmera não mexe. Os atores precisavam se mexer. Foi o primeiro clipão do cinema brasileiro. Passando pelo Japão, Egito, França, Nova Iorque, La conga, todos esses lugares pertenciam ao sonho do personagem, um delírio de que a musica fosse ao mundo. A trilha foi usada em cinco filmes americanos, incluindo o de Carmem Miranda em 1947. Os enquadramentos eram americanos, os temas brasileiros. Ganhou O Leão de Bronze e o Festival de Berlin. O Brasil começava a aparecer.

Vera Cruz se debatia em dividas. Os custos aumentavam e havia brigas nos bastidores. “Sinhá Moça”, sobre os últimos dias antes da abolição. No elenco: Eliane Lage, Alselmo Duarte. Parecia o filme “E o vento levou…”, era uma Scarlet O’Hara adocicada, progressista. À noite, o namorado se vestia de zorro para salvar os negros. O início do filme, na cena do trem, lembra “A Suspeita”, de Alfred Hitchock. Padrão completamente internacional em apresentar os personagens. Negro com força e identidade forte. Com Ruth de Souza consolidando a figura do negro no cinema brasileiro. Lê-se “A cabana do Pai Thomas”. Contraste em mostrar a vida dos negros e do casal burguês. A iluminação de claro e escuro acentuado era muito avançado para a época. As dançam e manifestações culturais eram questionáveis. Eram autenticas ou exóticas? Paralelo ao baile aristocrático, com qualidade da fusão e continuidade. A narrativa enfatizava o cinema internacional.

“O Cangaceiro”. Lima Barreto, um louco varrido, propôs contar uma historia que só podia acontecer no Brasil, com características nacionais. Cada filme da Vera Cruz era uma novela. Ele buscava a brasilidade com a inspiração do western. Seria o primeiro “Nordestern”, o nordeste brasileiro. Mas não era só sobre cangaço. Abria filão para um gênero que continua fértil no cinema brasileiro. Os produtores preocuparam-se. Como o publico internacional ia entender a musica “Mulher Rendeira” colocada no filme?. Virou quase um hino brasileiro. Luchino Visconti usou a musica em “Noites Brancas”, tornando-se mais globalizado do que nunca. “O cangaceiro” demorou meses. O personagem anda em direção a câmera e morre segurando a terra. Foi ao Festival de Cannes de novo. Com distribuição da Columbia, sucesso estrondoso. Para a exibição internacional, Lima Barreto precisou mudar o final, matando o vilão para que o filme fosse aceita lá fora. De repente, o Brasil aparece na tela. A quantidade de detalhes, ritmos, mobilidade neste sentido não havia. Cenas típicas de faroeste: abre e fecha janelas, mostra a crueldade do personagem e o requinte da foto do grupo.

Eles tinham meios. Alselmo Duarte disse “Os filmes tinham sucesso, público, porém custavam dez vezes mais que as chanchadas. A bilheteria não pagava os filmes brasileiros, com investimentos altos. Cinco anos depois estavam no final. Foi um período importante. Produção razoável e respeitável. “O cangaceiro” só perdia em bilheteria para “O ébrio”.

“Floradas na Serra”. Não há resquício de Brasil. Ultimo filme da Vera Cruz. Com Cacilda Becker, que só fez dois filmes e esse era o segundo. As pessoas queriam ver um filme bom? Um filme brasileiro? Havia classe, muito diferente do cinema popular, mas ainda tinha a impostação teatral. Abordava o existencialismo. “Todo mundo pensa na morte. Eu não tenho tempo, só penso em você”, com o típico chá da tarde. Flashbacks, fusões, avanços técnicos. O final do filme expressou a dicotomia da Vera Cruz. Para que lado ir. De carro ou de trem?
Os temas eram impostados. Leprosos, tuberculosos, eram mais sérios. Foi um esforço inútil? Se queimou talento? A tentativa artificial de se criar um produto internacional. “Cidade de Deus”, é brasileiro. “Ensaio sobre a cegueira”, é mais internacional. Os dois do diretor Fernando Meirelles. Quanto mais brasileiro, mais reconhecimento internacional atinge. Formaram-se técnicos com uma qualidade superior.

As coisas andam rápido no Brasil. Em 1957, mudou de novo. Com “Rio 40 graus”, de Nelson Pereira dos Santos, que dizia “Todo mundo estava penteado, mas não falava como o povo brasileiro”. Em “Barra Vento”, de Glauber Rocha, o foco da câmera é mudado, o povo não era mais um coadjuvante. É uma aula importante sobre uma companhia que tentou ser internacional. Não havia economia em valores de produção. Cidades construídas em estúdio.

No Cinema Novo, a equipe cabia em uma Kombi. Evolução de décadas em 5 anos.Havia uma grande rotatividade. Mazaroppi começou na Vera Cruz como ator e depois foi fazer cinema caipira. Na teoria estava tudo certo, o problema foi na hora de juntar. A principal critica foi a falta de brasilidade, representações exóticas. Quanto mais regional, mais universal. “Vidas secas” não falsifica a realidade.

Não existia um roteiro autoral, havia a tirania da montagem. Visavam uma proposta comercial, com uma narrativa clássica americana, com técnicos europeus e atores brasileiros. A Columbia ficou com toda a grana de “O Cangaceiro”, por causa da cessão aos direitos do filme. Isso deixou a Vera Cruz no vermelho.A conta não fechou. Tom Zé disse uma vez “Tem dias que não dá certo”. Na Atlântida os prazos eram cumpridos, os filmes exibidos e as contas fechavam. Não houve um erro estratégico, apenas uma equação de como se pagar contas.

Lista de filmes da Vera Cruz

1950 – Caiçara – drama dirigido por Adolfo Celi
1951 – Ângela – drama dirigido por Abílio Pereira de Almeida e Tom Payne
1951 – Terra é sempre terra – drama dirigido por Tom Payne
1952 – Apassionata – drama dirigido por Fernando de Barros
1952 – Veneno – drama dirigido por Gianni Pons
1952 – Tico-tico no Fubá – drama biográfico dirigido por Adolfo Celi
1952 – Sai da frente – comédia dirigida por Abílio Pereira de Almeida
1952 – Nadando em dinheiro – comédia dirigida por Abílio Pereira de Almeida e Carlos Thiré
1953 – Sinhá Moça – drama dirigido por Tom Payne
1953 – A família Lero-lero – comédia dirigida por Alberto Pieralise e Gustavo Nonnemberg
1953 – O cangaceiro – drama dirigido por Lima Barreto
1953 – Uma pulga na balança – drama dirigido por Luciano Salce
1953 – Esquina da ilusão – comédia dirigida por Ruggero Jacobbi
1953 – Luz apagada – drama dirigido por Carlos Thiré
1954 – É proibido beijar – comédia dirigida por Ugo Lombardi
1954 – Na senda do crime – drama dirigido por Flamínio Cerri
1954 – Candinho – comédia dirigido por Abílio Pereira de Almeida
1954 – Floradas na Serra – drama dirigido por Luciano Salce

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