Here
O aqui, o agora: uma homenagem rizomática à Bruxelas
Por Paula Hong
Festival de Berlim 2023
O aqui, o agora. Pare. Observe. Respire. Se aproxime. Olhe mais de perto. Não enxerga o suficiente? Pegue uma lupa. Preste atenção. Absorva o que observa. Se atente aos detalhes. Olha este mundo que cabe na palma da tua mão. (Também procura onde semear algum resquício de pertencimento? Quais são as raízes que fincam a sua permanência? Ou o que é que lhe faz ir embora?) O que é que passou despercebido, apesar de estar em toda parte? Bonito, não é? Tem mais disso aí de onde você achou. Agora, perceba o caminho adiante. É tão longo que forma uma linha reta, plana, torna-se difícil de prever onde acaba. É longo, mas vale a pena.
A magnitude acachapante das cidades sempre em expansão impressiona pelas pequenas disputas de espaço, de um lugar para chamar de seu. A solução parece seguir a lógica da construção de prédios cada vez mais altos, enxutos em largura, desde que sejam capazes de oferecer metros quadrados o suficiente para abrigar quem não tem muita escolha por onde começar. Em um mundo onde alguns são forçados a deixar seus lares, reconstruir e nutrir qualquer resquício de pertencimento consiste em uma caminhada frenética e, muitas vezes, solitária.
Com “Here”, o mais novo e premiado longa de Bas Devos (“Ghost Tropic”), somos convidados a nos localizar no tempo e no espaço que o agora engloba, a respirar um pouco, a parar e observar nossos arredores, a refletir, por intermédio das lentes passageiras de Stefan (Stefan Gota), o que nos mantém aqui.
A cena de abertura de “Here”, na montagem que alterna entre o verde do parque e do prédio em construção bem perto dali, mostra a capacidade do parque a céu aberto de barrar levemente a visão de mais uma obra ao redor, mas que sonoramente é forçado a coexistir com os barulhos das máquinas de construção. Tal cena dita o contrastante e duplo tom da dificuldade (tanto simbólica quanto literal) em fincar raízes em lugares cada vez mais alastrados pela massa cinzenta do cimento, impedindo e danificando a fertilidade logo nas camadas mais superficiais da terra — uma mensagem sustentada por poucos e breves (e belíssimos) planos, mas muito bem trabalhados na montagem que transmite as limitações cada vez mais nítidas do sufocamento visual do concreto.
Assim, Stefan, um imigrante romeno que, ironicamente, trabalha na construção civil (Devos então tocando na realidade das condições trabalhistas de imigrantes) e cuja vida gira em torno de um cotidiano simples, perambula por Bruxelas ao que parece para encontrar motivos para ficar, quando, em verdade, está se preparando para ir embora através de ações que se repetem: ele esvazia a geladeira e faz uma sopa que distribui em recipientes toda vez que encontra alguém, sobretudo conhecidos do país de origem. Como exemplo, há uma belíssima cena em que leva sopa para um mecânico que conserta seu carro. Ele partilha com outros mecânicos que fazem a refeição no meio do parque. Lá, eles são envoltos pela calmaria do verde, pela capacidade de abafamento sonoro que os protege da sinfonia esmagadora da cidade.
É dessa forma que o diretor igualmente nos traz para o agora da cena, do cinema, do “Here”, exibido na Mostra Encounters Festival de Berlim 2023. Entendemos, então, que nos encontros transformados em despedidas (às vezes como se o cinema estivesse se despedindo até da natureza), revertidos pela melancolia introvertida de Stefan, a maturidade e sensibilidade fílmica de Devos de expressar um recorte sintomático de nossos tempos quando Stefan faz a coleta de memórias de quem gosta e ama, e deste modo permite, na elaboração de longas tomadas, o respiro cênico necessário para tanto, assim como para contemplação daquilo que se passa despercebido: os microhabitats solitários de quem tem o mesmo propósito dele.
Isso é simbolizado quando ele acha uma espécie de horta comunitária que contém uma longa lista de espera para aqueles que querem um pedacinho de terra para chamar de seu. Na sua jaqueta, carrega um tímido punhado de sementes, mas não sabe o que fazer com elas. Uma mulher oferece espaço do seu pedaço para que ele as plante lá. A oferta generosa de alguém que cruzou seu caminho uma única vez. Mas nas cenas que passa sozinho dentro do apartamento, Stefan tenta se convencer de que aquela é a sua casa, como se ao mesmo tempo internalizando que merece uma porção de pertencimento naquele país que propõe a chamar de novo lar.
Em contraste com a sua jornada, somos apresentados a Shuxiu que, na mesma intenção que ele, explora Bruxelas, mas como outro propósito. Filtrado pelo foco de sua pesquisa, o olhar atento e detalhado de Shuxiu permite ampliar os resquícios de verde que persistem, apesar de tudo. A descrição de seu sonho, logo no começo da apresentação de quem é, nos permite ter uma ideia de como enxerga o mundo: a partir do entrelaço indistinguível da relação entre nós e a natureza, entre nós e o mundo, em como um faz parte do outro.
Seus caminhos se cruzam duas vezes: na primeira, ele está no restaurante da tia de Shuxiu, onde trocam breves palavras, mas que seguram a potencialidade de uma conexão; na outra, durante sua peregrinação, Stefan tromba com ela no parque enquanto coletava amostras de musgos — plantas que não possuem raízes. Nesses últimos minutos de “Here”, Stefan e Shuxiu caminham juntos, explorando o parque, compartilhando a inegável potencialidade de um amor que os ronda, mas que não finca raízes o suficiente para fazê-lo ficar — sua passagem, no entanto, deixa impressões. No fim, ele deixa um pouco de sopa para ela. Quando a tia pergunta quem deixou aquela sopa, Shuxiu percebe que não sabe o nome de Stefan mas, mesmo assim, sorri.