Heaven’s Gate: O Culto dos Cultos
A luz é a primeira forma de matéria criada
Por João Lanari Bo
“Heaven’s Gate: O Culto dos Cultos”, minissérie lançada em 2020, narra em quatro episódios a saga de uma das mais patéticas experiências humanas surgidas nos Estados Unidos – um suicídio coletivo, ao apagar das luzes do segundo milênio, em 1997, quase dois mil anos depois que Jesus Cristo padeceu na cruz. Nos anos de 1970, um cantor lírico frustrado, Marshall Applewhite, filho de ministro presbiteriano, surtou, foi internado e encontrou Bonnie Nettles, enfermeira que pensava grande: deu-se uma comunhão espiritual, que os levou a acreditar que ambos eram testemunhas mencionadas no Livro do Apocalipse, o último da seleção do cânon bíblico – escrito por São João na ilha de Patmos, no mar Egeu, durante período de perseguição aos cristãos, entre o reinado de Nero, em julho de 64, e a destruição de Jerusalém, em setembro de 70. Marshall e Bonnie engrenaram uma história fantástica: seus corpos em breve ascenderiam aos céus, em busca da luz eterna, transportados por…seres alienígenas em poderosas naves espaciais, ou seja, discos-voadores.
Disseminar essa mensagem preciosa passou a ocupar ambas as mentes, carismáticas e delirantes. A partir de 1975, a dupla passou a percorrer o país, esse vasto território, seduzindo desavisados e desprevenidos, arrancando-os de suas famílias, e constituindo-se em um grupo autônomo e teleguiado. A crença era que os humanos, na verdade, não passavam de extraterrestres que viviam em conchas, nomeadas posteriormente como “veículos”. Applewhite chegou a dizer que sua existência equivalia à segunda vinda de Jesus na Terra – e que a virada do milênio seria o momento de levar ao “próximo nível” aqueles que aderissem à boa nova. Ao fim e ao cabo, 39 pessoas puseram fim às suas vidas, à espera do transporte intergaláctico, em busca da ascensão anunciada.
No alto céu, onde mais a luz se incende
Eu fui, e vi tais coisas, que dizer
Não sabe ou pode quem de lá descende
A citação é do Paraíso da Divina Comédia, tradução de Haroldo de Campos. O poeta Dante Alighieri atravessa diversos acontecimentos, Inferno, Purgatório e Paraíso, num relato atemporal: sua força está na riqueza das alegorias. A Terra está no meio de uma sucessão de círculos concêntricos: levado ao rio Lete por Beatriz, sua amada, Dante chega ao Paraíso. Lá, o céu é cristalino, não tem estrelas, é só luz. Marshall e Bonnie, que passaram a ser chamados de “Do” e “Ti” – lembrança de uma das canções de “A Noviça Rebelde”, filme favorito de “Do” – provavelmente não conheciam os detalhes da discussão teológica do poema dantesco, mas estavam, ou queriam estar, no mesmo barco. A busca por uma iluminação transcendental, que seria uma espécie de pináculo de algo indizível – o arrazoado do projeto desafia os exegetas – moveu montanhas, a despeito da morte prematura de “Ti” em 1985, em princípio uma contradição com seu status de “veículo”.
“Heaven’s Gate: O Culto dos Cultos” se esmera em entrevistar ex-membros, sociólogos infiltrados e especialistas em religião para entender essa piração: trata-se de discurso calçado em um cristianismo básico, como a maioria das soi-disant igrejas modernas, misteriosamente (ou não) mesclado a detritos da cultura pop. “Star Trek”, por óbvio, é referência: “Do”, sorrindo docemente e com os olhos arregalados, apreciava a série. Cabelos e aparência andrógina, túnicas abotoadas até o pescoço, ar de tranquilidade – todos podiam a qualquer hora sair e voltar do time, no hard feelings – davam uma aparência exótica e suave ao grupo, até que se consumou o chamado final. O cometa Hale-Bopp aproximava-se da Terra e seria o momento ideal para a carona cósmica – fenobarbital com molho de maçã ou pudim, foi a receita do “transporte”. Alguns misturaram com vodca.
Diante de tudo isso, como reagir? Poucos dias após a tragédia, ninguém menos que o termômetro infalível Saturday Night Live satirizava impiedosamente os viajantes: um jeito curioso de exteriorizar a perplexidade. No fundo, ninguém entendeu nada: como pode um pastiche de ficção científica de repente metamorfosear-se em suicídio coletivo? “Heaven’s Gate: O Culto dos Cultos”, passados mais de 20 anos, demonstra cabalmente os efeitos das fake news nos corações e mentes de um punhado de “indivíduos vulneráveis”, como insistem os sociólogos – no mundo saturado de redes sociais de hoje, qualquer opção poderia ser ainda pior. Quem se deu mal, financeiramente falando, foi a Nike, obrigada a descontinuar a produção do tênis Decade, usado por todos os “veículos” na hora H e fartamente reproduzidos pela mídia mórbida. O SNL não deixou passar em branco: uma das sátiras era um comercial fake da Nike. Para os nostálgicos, o tênis pode ser comprado, a peso de ouro, na internet.