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Happy Hour: Hora Feliz

O transbordamento do real

Por João Lanari Bo

Festival de Locarno 2015

Happy Hour: Hora Feliz

Kiyoshi Kurosawa começou por nos mostrar filmes dos Irmãos Lumière, explicando-nos que a câmara é uma máquina de registro do real. Portanto, faz parte da sua natureza conter vários tipos de ruídos. Realizar, escrever argumentos e dirigir atores nunca a impede, nem impediu de capturar um real que extravasa qualquer ficção. Kurosawa revelou-nos essa natureza contraditória do ato de filmar e isso acabou por ser um momento fundamental na minha aprendizagem enquanto cineasta (Hamaguchi, entrevista ao site À Pala de Walsh)

Happy Hour: Hora Feliz”, que Ryusuke Hamaguchi dirigiu em 2015, é um transbordamento do real: são 5 horas e 17 minutos de duração, uma metragem que desafia cânones do mercado e da audiência. O formato habitual dos produtos cinematográficos oscila entre 1 e 2 horas, às vezes mais, sempre de olho na capacidade espectatorial de absorção e resistência – trata-se de um formato integrado no mundo do trabalho, que permitiu a veloz penetração do cinema na indústria do entretenimento. Na aurora do século 21, com as quase infinitas modalidades de consumo introduzidas pelas tecnologias alavancadas pela internet, o formato, bem ou mal, sobrevive. Filmes de longa-metragem continuam disponíveis nas salas e suportes eletrônicos: arriscar a ultrapassagem desses limites convencionais é sempre, enfim, uma temeridade. No caso em tela, a ousadia vingou – participação em pelo menos sete festivais internacionais, com prêmio de melhor atriz para o conjunto das quatro principais em Locarno 2015, e recepção crítica em geral positiva. Hamaguchi não pretendia inicialmente que o filme tivesse essa duração: rodado nos fins de semana, o planejamento previa algo em torno de duas horas e meia para a metragem final. Foram oito meses de filmagens, com atores não profissionais, em sua maioria participantes do workshop que o diretor realizou num centro de criação e design em Kobe, no Japão. À medida em que o filme avançava, Hamaguchi e colaboradores perceberam que era necessário compreensão mais acurada dos contextos e motivações de cada personagem, levando em consequência a um aumento de cenas e diálogos. Chegando na montagem, deu-se conta que cortes excessivos poderiam enfraquecer o resultado. Como não têm uma narrativa teleológica, ou seja, direcionada a um fim ou a um propósito, as 5 horas e 17 minutos de filme – ambientadas no cotidiano das protagonistas e entorno – simplesmente voam, passam rápido.

Voam, mas não deixam de captar os ruídos do real, como lembrou o cineasta referindo-se ao seu mestre, Kiyoshi Kurosawa. O elemento ficcional é sempre necessário para contar a história, mas o cinema é também o meio de captar a realidade circundante, no ato mesmo de filmar. Você começa com o gênero, que é ficção, e gradualmente se move em direção à realidade, costuma dizer Kurosawa: no meio do caminho, em algum lugar, descobre o filme.Happy Hour: Hora Feliz”, ao cultivar um sentimento de honestidade emocional – atores e atrizes parecem viver as linhas que falam, não apenas entregando-as – acaba envolvendo/engajando a audiência, em vez de esgotá-la pela sua duração e complexidade. Quatro amigas ocupam o centro do filme: Akari (Sachie Tanaka), enfermeira trabalhadora e divorciada; Fumi (Maiko Mihara), estressada curadora de um centro cultural, casada com um editor de livros; Sakurako (Hazuki Kikuchi), dona de casa atormentada, com filho adolescente e marido controlador; e Jun (Rira Kawamura), ex-dona de casa, atravessando um complicado processo de divórcio. O desenvolvimento da história se dá a partir dos relacionamentos que elas entabulam, balizados pelas convenções de comportamento social. A despeito de algumas coincidências artificiais de tempo e espaço – como personagens que se cruzam inesperadamente – prevalece um sentido orgânico no desdobramento das ações, que deságua num realismo dramático consistente. As questões que afligem o quarteto, todas em seus 30 e poucos anos, são universais: Como posso amar? Em quem posso confiar? Quando devo sair de um relacionamento?

Happy Hour: Hora Feliz” tem momentos que se desenrolam quase em tempo real. O maior deles é o workshop com título pouco promissor – “Escute o seu centro” – dado por um obscuro artista-residente, no local onde trabalha Fumi. Por mais de meia hora observamos as quatro amigas e uma dúzia de desconhecidos e desconhecidas em exercícios íntimos, como colocar a orelha na barriga de outra pessoa para escutar suas “entranhas”. Outro desses momentos é a leitura que uma jovem escritora faz de seu conto recém-escrito, na mesma sala, para uma plateia atenta e respeitosa. Ambas sequências geram disrupções nas vidas das personagens – e funcionam como câmaras de reverberação que permitem o transbordamento do real dentro da narrativa. Tudo isso filmado num estilo sóbrio, contido, permeado de gestos de cortesia e mesura típicos da vida japonesa. Não há sobressaltos: em algum lugar, durante as 5 horas, você descobre o filme.

4 Nota do Crítico 5 1

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