Golda – A Mulher de Uma Nação
Dia da Expiação
Por João Lanari Bo
Festival de Berlim 2023
“Golda – A Mulher de Uma Nação”, de 2023, é um filme inteiramente focado na performance da então Primeira-Ministra de Israel, Golda Meir, durante a Guerra de Yom Kippur – conflito militar ocorrido de 6 a 26 de outubro de 1973, entre uma coalizão de estados árabes, liderada por Egito e Síria, e Israel. A guerra começou com ataque surpresa do Egito e Síria no dia do feriado judaico Yom Kippur: a data é das mais importantes do calendário religioso de Israel, momento de expiação e arrependimento dos pecados – as observâncias do dia consistem em jejum completo e comportamento ascético acompanhado de oração intensiva, bem como, naturalmente, de confissões. Os países árabes já tinham sofrido pelo menos duas derrotas em guerras contra os israelenses: em 1948, logo após a criação de Israel ser votada na ONU (sessão presidida pelo brasileiro Oswaldo Aranha); e na guerra dos Seis Dias, de 1967, quando o efeito surpresa do ataque preventivo israelense se transformou em clara vitória, apesar da superioridade numérica e material dos árabes. O objetivo em 1973, mais uma vez, era acabar com o estado de Israel.
O parágrafo acima é, obviamente, um curto e grosso resumo das querelas entre israelense e árabes, algo complexo e de dificílima apreensão – sobretudo se o que se pretende é uma visão objetiva e imparcial. “Golda – A Mulher de Uma Nação” mostra apenas o ponto de vista de um dos lados, sem se preocupar um minuto sequer em expor o contraditório. Trata-se de um filme de propaganda israelense, dirão os mais exaltados – não há a menor referência, por exemplo, aos milhões de palestinos que tiveram de abandonar suas casas durante todos esses anos, a partir de 1948, e que estão na raiz da eclosão das guerras. O filme se passa nos dez dias de duração do conflito de 1973, esmiuçando o processo decisório, incluindo falhas e virtudes, da cúpula israelense – e é só. A guerra, enquanto espetáculo cinematográfico de destruição e fetichismo militar, transparece apenas nos relatos dos generais e na escuta das comunicações entre os que estão na frente de batalha. Não há imagens de combates, explosões ou mortes. Além dos palestinos, também não há menções sobre o que se passa do outro lado, egípcios e sírios, o que pensavam seus líderes, ou como reagiram as respectivas populações.
O que interessava aos realizadores foi demonstrar, de alguma maneira, o papel de Golda em gerenciar seus assessores diante do ataque duplo – ao sul, com os egípcios avançando na península do Sinai, e ao norte com os sírios entrando pelas colinas do Golã. A soberba de alguns generais, como o midiático Moshe Dayan, que não acreditavam serem os árabes capazes de confrontar o poderio israelense, atrasou decisões fundamentais que custaram centenas de vidas. Por muito tempo Golda Meir levou a culpa dessa hesitação, eclipsando sua atuação no rol das lideranças israelenses. Tal percepção começou a mudar há alguns anos, com a revelação de documentos secretos sobre a disputa de opiniões naqueles dias tensos – Dayan teve um colapso nervoso no início da guerra, aterrorizado com o “Armageddon” (suas palavras) que iria se abater sobre Israel e chegando a propor reação com armas nucleares (Israel, como é sabido, não admite oficialmente que possui bombas atômicas, nem é signatário dos tratados internacionais obre o assunto, mas é notório que dispõe de arsenal nuclear).
É nesse ponto que o casting de “Golda – A Mulher de Uma Nação” se mostrou particularmente eficaz: no papel de Golda, Helen Mirren aparece maquiada e precisa em expressar a circunstância dramática em que se encontrava a líder israelense – ademais da pressão da guerra, algo inimaginável para a grande maioria dos mortais, ela tinha sessões de quimioterapia para tratar de linfoma, e fumava sem parar. É ela quem carrega a narrativa do filme. Ao seu lado, destaque para a excelente atriz francesa Camille Cottin no papel de acompanhante médica e afetiva (o câncer que Golda sofria, e que terminou com sua morte em 1978, era segredo de Estado à época). E também para Liev Schreiber, que fez o papel de Henry Kissinger, decisivo no encaminhamento da solução negociadora do conflito – a guerra do Yom Kippur pode ser vista como um dos desdobramentos da Guerra Fria entre EUA e URSS, os primeiros apoiando Israel e os soviéticos favorecendo Egito e Síria.
Golda Meir nasceu em Kiev, na Ucrânia, e com oito anos de idade emigrou com a família para os Estados Unidos. Não era fácil ser judeu no império czarista, pogroms se sucediam, assassinatos e violência. Acabou indo para o território da Palestina em 1921 – até um ano antes, o território pertencia ao Império Otomano e, em consequência da 1ª Guerra Mundial, passou para o controle inglês, junto com o Iraque (os franceses ficaram com Líbano e Síria). O projeto de Golda e demais imigrantes era fundar um Estado judeu socialista – a maior parte entre eles, oriundos do Leste europeu, era politicamente de esquerda.
Faltou combinar com os palestinos que ali viviam. Foram anos de choques seguidos entre as comunidades, sob o olhar complacente dos ingleses – e que perduram até hoje. Golda liderou sindicatos e o Partido Trabalhista israelense, de centro-esquerda, durante toda sua vida política. Sua trajetória confunde-se, enfim, com a história de Israel, pelo menos enquanto viveu: hoje Israel, um país democrático imerso numa zona que lhe é hostil, apresenta um ambiente altamente polarizado, com a ascensão da extrema direita – mas essa é outra história, que Golda não viu.