Garoto Chiffon
Uma estreia modesta
Por Pedro Mesquita
Festival de Cannes 2020
“Garoto Chiffon” é um filme protagonizado, escrito e dirigido por Nicolas Maury. Ator com mais de duas décadas de carreira — e cujo currículo inclui a série da Netflix “Dix pour cent” —, Maury aventura-se pela primeira vez no papel de diretor fazendo um filme sobre… pasmem, um ator. Como terá se saído, então, o estreante?
O filme conta a história de Jérémie, jovem ator que reside em Paris. Sua vida vai de mal a pior: os seus ciúmes desgastam a relação com o namorado, Albert (Arnaud Valois), e as oportunidades profissionais são raras (e, quando aparecem, não são aquilo que ele deseja; Jérémie recebe um convite para ser “coach” de uma aspirante a atriz, mas recusa, dizendo que o que realmente quer é atuar). No meio disso tudo, porém, uma oferta interessante lhe chega: representar um personagem que se parece com ele próprio: “É a história de um jovem melancólico em um mundo hostil, atormentado pelo desabrochar de sua sexualidade”, nas palavras do próprio Jérémie.
Motivado pela morte do pai, ele decide viajar de volta para a casa da mãe (Nathalie Baye), a fim de se reconectar com a família. Lá, ele poderá ensaiar as falas da sua personagem, preparando-se para a audição que terá de apresentar ao voltar a Paris, e dar um tempo de sua relação com Albert.
Apesar de ser uma produção inegavelmente contemporânea, “Garoto Chiffon” põe em cena uma situação muito familiar na história da literatura francesa: a volta à província como um abrigo dos perigos que a cidade grande, Paris, oferece. Ao longo de sua estadia, Jérémie é cuidado por sua mãe, sempre muito prestativa, que o ampara nos seus momentos mais difíceis. Em um dado momento, por exemplo, Jérémie tem mais um acesso de ciúme com seu namorado por telefone, e esse decide encerrar de vez o relacionamento; Jérémie, por isso, tenta o suicídio pulando num lago. Ele é resgatado por um grupo de freiras que passava por perto naquele momento, que o levam até um convento e entram em contato com sua mãe para que ela venha buscá-lo. Para um filme tão liberal no seu tratamento da sexualidade do protagonista, as soluções dadas para os conflitos do filme são conservadoras: no final das contas, a família (e, por que não, a religião) restauram em Jérémie a vontade necessária para retomar a sua rotina.
De aspecto renovado, a mãe manda-o de volta a Paris — sem antes presenteá-lo com um cachorrinho para fazer-lhe companhia —, e o jovem volta enfim à cidade, pronto para conseguir o papel para o qual estava ensaiando. A audição é um sucesso, e o diretor observa que ele “tem uma visão muito pessoal do personagem”. É aqui que o espectador pode perceber — se ainda não o havia feito — que “Garoto Chiffon” não é, nem mesmo nunca pretendeu ser, um filme sobre o teatro, essa arte por meio da qual o ator se torna aquilo que ele não é. Jérémie, ao invés de usar o teatro para escapar da sua realidade, usa-o para enfrentá-la e superá-la, quase como numa sessão de psicodrama. Após dominar a sua personagem, ele estará apto a superar a ausência do pai; colocar um ponto final em seu relacionamento com Albert; aceitar-se, com seus vícios e virtudes; abrir-se à possibilidade de um novo relacionamento…
O momento que concretiza todo esse arco vivido pela personagem é o número musical do final, em que Jérémie sintetiza poeticamente os seus percalços vividos ao longo da narrativa ao mesmo tempo em que celebra um novo ciclo que se inicia. A cena, que conta com alguns travellings e reenquadramentos expressivos enquanto a personagem se movimenta pelo espaço, é um pequeno sopro de vida num filme cuja apresentação até aqui havia sido a mais protocolar possível. E é aqui que reside o mal de “Garoto Chiffon”: estreante na direção, Maury cede à tentação de aderir a uma decupagem por demais televisiva, quase sempre isolando cada elemento individual de uma cena em seu quadro separado (e abstraindo-o do seu entorno, em planos médios ou fechados), alternando-os mecanicamente de acordo com o que pede o roteiro… Disso resulta que o filme é perfeitamente “legível”, mas pouquíssimo comovente.
Pode-se considerar natural que um ator estreando na direção reivindique para si uma abordagem que prime por “apagar” a câmera, torná-la “transparente”, para fazer melhor aparecer aquilo que está diante dela, isto é, a interpretação dos atores. Mas o seu estilo protocolar (ou não seria isso, na verdade, uma falta de estilo?) sequer atinge esse objetivo, pois torna cada movimento da narrativa, independente da intensidade dramática almejada, banal.
Se o cinema é, segundo Éric Rohmer, uma “arte do espaço”, Nicolas Maury deverá certamente aprender o significado dessa expressão até o dia em que lhe ocorrer assinar a direção de mais um filme. Esperemos por esse dia, com a esperança de que ele nos surpreenderá.