Curta Paranagua 2024

Four hours at the Capitol

Quatro horas que abalaram o mundo

Por João Lanari Bo

Four hours at the Capitol

Four hours at the Capitol” é um documentário real time sobre o patético acontecimento que surpreendeu o mundo em 6 de janeiro de 2021, quando uma horda heterogênea de manifestantes pró-Trump invadiu o Capitólio em Washington, a casa do Legislativo. Passados quase quatro anos, o fatídico evento parece ter sido diluído na neblina apocalíptica que caracteriza a psique coletiva contemporânea, das redes sociais e algoritmos, dos simulacros e pós-verdades. Às vésperas de nova eleição presidencial, assistir ao filme de Jamie Roberts – e Dan Reed (de “Deixando Neverland” e “Alex Jones – Uma Guerra Contra a Verdade”) como produtor-executivo – equivale a revisitar uma cena primária, daquelas que configuram o recalque psíquico dos neuróticos.

O vocabulário psicanalítico serve de atenuante para um esforço precário de racionalizar não apenas ao que de fato ocorreu, mas sobretudo no que toca ao apagamento posterior, a negação compulsiva de responsabilidades – começando pelo topo, com Trump e os políticos a ele alinhados, e chegando ao aparato midiático a eles atrelado. Mesmo o sistema jurídico dos EUA, certamente o mais equipado do planeta, não foi capaz de materializar provas suficientes para incriminar esses agentes, a despeito das evidências e dos inúmeros processos em curso. Apenas os peixes miúdos, alguns deles pormenorizadamente expostos em “Four hours at the Capitol”, estão acertando contas com a Justiça. As sucessivas postergações do processo específico contra Trump revelam não apenas a incapacidade do sistema, mas talvez a própria corrosão institucional da vida política como um todo.

A assertiva pode parecer overdramatic, mas naturaliza-se diante da sequência de falas e arroubos dos possessos que invadiram o Capitólio, portadores de um desejo psicótico de ruptura. A noção de contrato social surgida nos séculos 16 e 17 – a ideia singela era a de que as pessoas abrem mão de certos direitos para um governo ou outra autoridade a fim de obter as vantagens da ordem social – veio por água abaixo. É irônico que boa parte dos invasores apareça envolto em bandeiras ou signos nacionalistas, gritando “USA”, “Freedom” e “1776”, ano da independência conquistada do poder colonial inglês. Mesmo os grupos mais radicais, como “Proud Boys” e “Cowboys for Trump” ostentavam esse suposto patriotismo. A ruptura simbolizada pela invasão – ou a escalada que aponta para a derrocada de quase 250 anos de democracia norte-americana, “a mais longeva da história” – cristaliza-se em cada esquina dos corredores do Capitólio, no percurso entrópico da massa e na resistência infrutífera dos policiais, reconstruídos pela hábil edição cronológica de “Four hours at the Capitol”.

O ataque ao Capitólio, como se sabe, foi instigado pelo discurso incendiário no mesmo dia de Trump no parque Ellipse, perto da Casa Branca. O objetivo seria impedir sessão conjunta do Congresso de contar os votos do Colégio Eleitoral para certificar a vitória do presidente eleito, Joe Biden. O documentário não hesita em dar voz aos apoiadores: um deles sorri e descreve a cena como um grande dia para a América! Outro diz que Trump foi ungido por Deus e é o salvador. As reações de políticos que estavam no Capitólio registram a perplexidade do acontecimento – realmente, ninguém poderia prever que chegaria a esse ponto.

Não se trata, enfim, de uma mera compilação de imagens das inúmeras câmeras que adentraram o local – não somente celulares, mas também de profissionais – nem tampouco um simples registro de câmeras de segurança. “Four hours at the Capitol” constrói um relato meticuloso do núcleo da cena e da dinâmica dos acontecimentos, incluindo entrevistas gravadas posteriormente, dos mais variados participantes. A dimensão do ataque fica evidente a cada barreira que era superada pelos invasores. Foi um combate feroz, corpo a corpo – em um momento, um policial é arrastado para fora e fica sob risco iminente de linchamento. Pegue a arma dele, atire nele com a arma dele, grita alguém: milagrosamente, manifestantes moderados conseguem contornar e encaminhar a (quase) vítima para o interior do prédio.

No final do dia, seis pessoas morreram: uma mulher foi baleada pela polícia do Capitólio, outra morreu de overdose de drogas, três morreram de causas naturais e um agente de segurança faleceu após ser agredido pela turba. Muitos ficaram feridos: quatro policiais cometeram suicídio em até sete meses depois da invasão.

E dois anos depois, em 8 de janeiro de 2023, ocorreu ataque similar ao centro do poder em Brasília – a história se repete como farsa, como dizia Marx, ou como rima, como afirmava Mark Twain.

4 Nota do Crítico 5 1

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