Curta Paranagua 2024

Ferrari

Motores, luto e crise conjugal

Por Pedro Sales

Festival de Veneza 2023

Ferrari

“Todos sonham em dirigir uma Ferrari, e essa era minha intenção desde o início” – Enzo Ferrari

A frase que abre este texto imprime todo o valor simbólico por trás da marca Ferrari: um carro que se tornou sonho de consumo. Desejo até para aqueles do meio automobilístico, vide a recente mudança do piloto de F1 Lewis Hamilton. A cinebiografia dirigida por Michael Mann (“Fogo Contra Fogo”), porém, não se escora no caminho mais fácil: contar a história de sucesso da montadora e como a máquina se tornou objeto de luxo. Em “Ferrari“, o recorte histórico explora um dos momentos mais dramáticos da empresa e do relacionamento de Enzo e sua esposa Laura. A dramaticidade proposta no filme traz um tom pessimista a toda obra, inclusive às corridas. Mann constrói, portanto, uma tragédia em todas as frentes. O desmoronamento conjugal, o drama corporativo e a história de fantasmas em um luto ainda recente.

Em 1957, Enzo Ferrari (Adam Driver) se vê imerso na incerteza da sobrevivência de sua marca e de seu próprio casamento com Laura Ferrari (Penélope Cruz). A única solução para salvar a empresa é vencendo o torneio Mille Miglia, uma corrida de mil milhas – ou 1.600 km no nosso sistema de unidades – percorrendo a Itália de Roma à Brescia, ida e volta. O casamento, por outro lado, não é tão “simples” de se salvar. O casal lida com a morte do filho Dino em decorrência de uma distrofia muscular e com os casos extraconjugais de Enzo. Sendo que o mais duradouro, com Lina Lardi (Shailene Woodley), deu como fruto o filho Piero. O filme se estrutura, então, neste tripé: a crise no casamento, a possível falência da Ferrari e a corrida. Neste último tópico é onde o cineasta consegue demonstrar seu olho para a ação, mas ainda assim resguardando a gravidade onipresente na obra que se estende para os motores dos corredores Alfonso de Portago (Gabriel Leone) e Piero Taruffi (Patrick Dempsey).

O que Michael Mann faz em “Ferrari” é a completa antítese do filme de James Mangold, “Ford vs. Ferrari“. Enquanto o outro longa gira em torno da corrida de LeMans, aqui a Mille Miglia é um meio para um fim – a salvação da montadora. Isso se reflete também na forma como o cineasta filma as próprias corridas. Inicialmente existe a carga de adrenalina pontuada por uma montagem ágil ou pela alternância entre relógios marcando o tempo na igreja e a velocidade na pista. Após um incidente trágico, no entanto, a corrida em si começa a ser muito mais uma manifestação de tensão e insegurança. Nessa cena que é determinante para o longa, mesmo sendo quase desdramatizada pelos personagens, o diretor marca a ruptura quando estiliza o tempo – a agilidade do carro e a câmera lenta no acidente. Ou seja, depois disso o tesão em correr é esvaziado. Apesar das excelentes cenas de ultrapassagens, planos gerais que demonstram as máquinas cortando a paisagem italiana e um ótimo uso do som com motores que trovejam, o tom é extremamente fatalista pela possibilidade da falência e, pior, o risco de um acidente fatal em alta velocidade, mais um para a Scuderia Ferrari.

Ao abrir mão da ação inerente ao ato de correr e transformá-lo em um perigo intenso, o cineasta é coerente com a unidade estilística proposta e valoriza o drama pessoal e corporativo. Só é incômodo, em alguns momentos, quando pesa a mão na trilha sonora para querer intensificar tal sentimento já estabelecido, com uma inclinação melodramática até adequada para as relações entre os personagens, nem tanto para as corridas. Esta não é a obra dos louros da vitória da montadora, como já foi apontado, é o filme da intangibilidade do sucesso, da iminência do fim e da densidade de um relacionamento em pedaços. A ausência de Dino, que nunca aparece senão como foto na lápide, é sentida a cada diálogo entre Enzo e Laura. Penélope Cruz, inclusive, concentra muito bem essa fragilidade emocional e uma determinação para se impor como uma das donas da empresa. A vida dupla de Enzo também é outro elemento narrativo que amplifica essa sensação de impossibilidade de resolução, mesmo sendo mais feliz com Lina, depende ainda bastante da esposa.

Dessa forma, “Ferrari” se distancia bastante de outros filmes que são meramente odes aos produtos que “homenageiam”, onda recente em Hollywood. O risco e o pessimismo que a obra imprime, de certa forma, associa-se com o próprio contexto de produção. Ferrari é um símbolo dos sonhos, da velocidade, do luxo, do sucesso e o filme contrapõe essa imagem ilibada ao explorar o outro lado. É como se o próprio espectador, na ânsia de ver uma história de empreendimento e vitórias, fosse colocado em xeque pelo sombrio recorte da obra, que mais se assemelha a uma tragédia. Para isso, Michael Mann possui um domínio tonal muito bem delineado, uma vez que ao longo de todo o filme há essa aura de risco e tensão. Mesmo que a ação propriamente dita seja secundária, a direção ainda possui um entendimento superior da linguagem, da montagem e do som que muitas obras do gênero. E em relação ao drama, o diretor é bastante elegante na encenação, diálogos filmados em um só plano por meio de reflexos e alternância de foco mas com a dor palpável nessa história de motores, luto e crise conjugal.

 

4 Nota do Crítico 5 1

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